Aos olhos de um desconhecido, a menina bonita e de sorriso fácil, que aos 17 anos administra a própria loja de trajes para eventos em Caxias do Sul e se prepara para iniciar a faculdade de Fisioterapia, parece transbordar confiança. Talvez tivesse sido assim, não fosse um trauma vivido na infância e que moldou sua personalidade tão tímida quanto introspectiva. Vítima de bullying de colegas na escola, quando o cabelo curto provocava piadas e insinuações de que parecia um menino (e como se isso fosse negativo), Camila Rizzon Rossi, então com 11 anos, silenciou e fechou-se para o convívio. Na hora do recreio, se escondia para não ser ofendida. Foram necessários três anos de terapia e apoio incondicional da família para começar a superar uma fase cujas marcas ainda são dolorosamente sentidas.
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– O que me machucava era o julgamento das pessoas. Comecei a me questionar se eu era bonita, se elas me aprovavam. Passei a duvidar de mim mesma. Mesmo já tendo passado aquela fase, ainda tenho muita dificuldade em me expor e ter meu momento de fala. Fico com a sensação de que as pessoas irão me olhar com reprovação – conta a jovem.
O bullying é uma mazela social agravada por ser, na maioria das vezes, silenciosa. Psicólogos e educadores concordam que a dificuldade de pais e familiares em identificar o problema, aliado ao medo e a vergonha que inibem a vítima de revelar que sofre a violência verbal, emocional ou física, é um entrave para combater o problema. O professor e coordenador do programa Cipave (Comissões Internas de Prevenção de Acidentes e Violência Escolar), da Secretaria Municipal de Educação (Smed), destaca que encorajar crianças e adolescentes a denunciarem casos de bullying e ciberbullying (quando a exposição e o constrangimento são levados para as redes sociais) é um dos maiores desafios da comunidade escolar, no âmbito da violência.
– Se a vítima não denuncia o agressor, acaba por fortalecê-lo. Se há a denúncia, o agressor vai pensar uma ou duas vezes antes de repetir qualquer tipo de abuso. Muitas vezes, por medo ou por intimidação, a criança ou adolescente acaba recuando e vai carregar consigo aquele trauma. Quando chegar na idade adulta, vai ter problemas emocionais decorrentes daquela situação. Além de quebrar rótulos, preconceitos e discriminações, o diálogo também busca conscientizar quanto à importância da denúncia – relata.
Para Camila Rossi, só foi possível superar o sentimento de culpa – inerente à condição de vítima de bullying – após ter se aberto com os pais. Além de dar carinho e ouvidos, a família a encaminhou para a ajuda profissional.
– Eles sofreram junto comigo, mas também me deram muita força e me mostraram que eu não estava sozinha. Buscar ajuda não é fraqueza – conta a jovem.
Até o próximo dia 15 de abril, as escolas da rede municipal de Caxias devem encaminhar à Smed um relatório com as suas principais vulnerabilidades. Além do bullying, este documento irá apontar se a escola lida com problemas como drogadição no entorno ou infraestrutura, para citar alguns mais comuns. O documento irá nortear as ações da Cipave.
– A gente trabalha em cima do diagnóstico enviado por cada escola. O plano de ações é bastante amplo, envolve palestras sobre temas como os perigos das redes sociais, por exemplo. Realizamos círculos de diálogo com temas como autoestima e autocuidado, até encaminhamento para o setor de atendimento psicossocial da prefeitura. Também trabalhamos em parcerias, como a que temos com a Guarda Municipal, que desenvolve ações preventivas importantes junto às escolas – ressalta o coordenador do programa.
Ramos acrescenta que é difícil ter dados atualizados sobre bullying e violência escolar em Caxias. Uma ferramenta que fornecia boas informações, o Cipave online, no qual as escolas cadastravam suas ocorrências em uma plataforma digital, foi desativado durante a gestão do prefeito afastado Daniel Guerra (Republicanos). A sensação dentro da Cipave e da comunidade escolar, contudo, é de que as ocorrências vêm diminuindo, conforme o tema ganha mais atenção:
– Apesar da tabulação de dados ter sido prejudicada nos últimos anos, as escolas nos passam que tem havido uma redução no número de casos. Fruto do trabalho maior de conscientização, que tem sido feito algo em torno de oito anos para cá – destaca.
MENINAS XINGAM,
MENINOS BATEM
Sem dados da prefeitura, uma noção pode ser obtida com os dados do pesquisador Ricardo Rech, coordenador do curso de Educação Física da UCS e que estudou o bullying nas escolas da Serra Gaúcha em seu doutorado na UFRGS. Rech aplicou um questionário a mais de 5 mil alunos da região, cujas respostas apontaram que 10% dos estudantes entre 11 e 14 anos já foram vítimas de bullying, enquanto 7% se reconheceram como agressores (o número de vítimas fica acima da média nacional, que é de 7%. Já o de agressores fica abaixo, sendo este 13%).
– Além do incentivo à denúncia, acredito que um fato importante para a prevenção seja a atenção aos sinais desde os primeiros anos da criança na escola. Principalmente para identificar possíveis agressores. Mesmo que seja uma idade em que a criança não pratique o bullying de forma proposital, é possível identificar traços que possam ajudar a identificar um futuro agressor – destaca o professor.
O estudo feito na região aponta que os tipos de bullying mais frequentes contra meninas são de cunho verbal/emocional (ofensas, injúrias, xingamentos), enquanto meninos sofrem mais agressões físicas. Comentários de teor sexual também afetam mais meninas, enquanto meninos sofrem mais discriminações racistas. A pesquisa ainda aponta que os casos que têm meninas como vítimas são mais frequentes na sala de aula (65%), enquanto meninos sofrem mais bullying no pátio da escola (57%). Outros locais citados são o refeitório, o pátio, os banheiros e o trajeto para a escola.
– O bullying acaba acontecendo muito com aquele que foge um pouco do que é a média natural. O aluno que se destaca mais ou aquele que tem mais dificuldade, o que é muito alto, o que é muito baixinho, o que é muito magrinho, o que é muito gordinho. Aquele que foge ao que a sociedade convenciona como uma normalidade – analisa o pesquisador.
Se uma das explicações para o bullying está na falta de empatia, é preciso despir o olhar do preconceito também contra o agressor. Trata-se, afinal, de alguém que precisa de ajuda com suas angústias e frustrações. Na maioria das vezes, são crianças ou adolescentes que carregam para a escola humilhações que sofrem em casa. Para André Ramos, da Cipave, em casos de bullying o que pratica precisa tanto de ajuda quanto o que sofre:
– O agressor também é vítima, muitas vezes vítima da sua própria família. É uma realidade muito triste. Ele carrega consigo um trauma, uma angústia que muitas vezes ele vai descontar dentro da escola, com colegas, com crianças mais frágeis do ponto de vista físico ou emocional.
“Virei uma pessoa isolada, sempre na defensiva”
Vítima de bullying desde a pré-escola, pro ter sido uma criança e depois uma adolescente gordinha, a caxiense Eduarda Keiber, 15, levou seu trauma a situações mais extremas. Chegou a praticar automutilação, cortando a própria pele por negar o próprio corpo. Na escola, onde o deboche contra o seu peso ocorria, assumiu uma persona agressiva e até violenta, que não condizia com a pessoa de trato fácil que é fora do ambiente escolar.
– Aquele tratamento que desde pequena me machucava, foi se tornando algo que eu encarava como natural. Mas ao custo de ter virado uma pessoa isolada e sempre na defensiva, com respostas agressivas, partindo para a briga. Fui me afastando das pessoas e afastando as pessoas de mim. Além de me fazer ter problemas com o meu corpo, o bullying interferiu na minha forma de ser – diz.
Com auxílio psicológico, Eduarda conta que passou a se aceitar melhor no último ano do ensino fundamental, chegando a se aproximar de colegas e fazer amizades. No entanto, o passado ainda carrega uma marca muito forte, que a adolescente espera poder apagar agora que irá ingressar no ensino médio, em outra escola.
– Sem a carga do julgamento daquelas pessoas que conviveram comigo na minha fase mais difícil, quero ser a Eduarda que eu acredito que sou de verdade. Gentil, que conversa, que brinca, que ajuda quem precisa. Sei que às vezes vou estar na defensiva, mas acredito que cada vez menos – projeta a menina de voz baixa e fala tranquila.
Rede de apoio pelo WhatsApp
Além da experiência com o bullying na infância, Camila e Eduarda têm em comum o contato com a obra do escritor caxiense Pedro Guerra. Especialmente a partir a publicação de Todo o Bullying da Minha Vida (2019), coletânea de textos em que aborda a própria relação com o bullying que sofreu na infância e na adolescência, Pedro desenvolveu uma relação próxima com jovens que se identificam com suas crônicas. Em seu site, chegou a criar o projeto Conversa Comigo, no qual conversa com leitores e os aconselha. Pedro também gerencia um grupo de WhatsApp, que cerca de 50 jovens utilizam para conversar e trocar experiências.
– Muitos leitores não se sentem seguros nem mesmo em suas casas. Percebi uma carência muito grande desses jovens, que às vezes sofrem com depressão, pensamentos suicidas e se escondem atrás desse sofrimento. Nem mesmo permitem que seus pais, amigos ou professores os ajudem. O contato com o meu livro, porém, os encorajou a falar, mesmo que de forma anônima, às vezes – comenta.
Por iniciativa própria, Pedro traduziu e adaptou o questionário britânico Kidscape (o mesmo utilizado por Rech), que então foi aplicado a 2,3 mil alunos nas escolas que trabalharam seu livro em sala de aula. As perguntas abordaram casos de bullying sofrido no último ano, e 51% dos entrevistados afirmaram ter sido vítimas de bullying pelo menos uma vez no último ano (2019). 37% também responderam ter ajudado a maltratar algum colega pelo menos uma vez. De acordo com o escritor, as respostas apontam para problemas que muitas vezes passam despercebidos por professores e diretores:
– Mergulhei nesse assunto por sentir que eu também queria ter tido, na minha infância, essa figura neutra, que não estivesse comigo no dia a dia e não fosse me julgar, mas que eu pudesse conversar. Alguém que tivesse me mostrado que o legal é ser diferente e que seguir o padrão é ser apenas mediano. É esse olhar positivo, que facilite a pessoa a se aceitar, que eu tento levar nos meus textos e palestras.
“Violência se modifica com capacidade de pensar”
Além do resgate da empatia, a psicóloga e psicanalista caxiense Camila Scheifler Lang considera que uma das principais urgências no combate ao bullying é desenvolver a capacidade da escuta, tanto no ouvir o outro quanto a si mesmo. Confira a entrevista:
Almanaque: quais as questões mais urgentes a serem consideradas sobre o bullying, especialmente no ambiente escolar?
Camila Lang: Precisamos atentar para as questões individuais: quem é esse sujeito? O que ele deseja? Em se tratando de ambiente escolar, temos a necessidade de questionarmos padrões, condutas e prática violentas. A urgência, a meu ver, está em reparos no simbólico. Precisamos de arte, de cultura, de palavra para que toda e qualquer ação violenta, que é humana, seja transformada. E, quando falo em transformada, não quero dizer doutrinada, cerceada ou mesmo amputada. Violência se modifica com capacidade de pensar. A educação cumpre um papel social imprescindível, mas ela não pode reproduzir modelos alienantes de pensamento.
Na medida em que uma sociedade caminha para a competitividade cada vez maior, a empatia parece ficar cada vez mais esquecida. Isso estimula o aumento do bullying?
Em tempos em que o melhor é sempre estimulado, valorizado, diferenciado e cultuado, aquele que sai desse padrão está fadado a fracassar. Isso também é um gerador de sofrimento e depressão, daí vivermos numa sociedade adoecida. Precisamos resgatar em nós a capacidade de amar, de cuidar, de amparar aquilo que é mais humano: a afetividade. Mesmo que tenhamos todas as técnicas de reprodução assistida por exemplo, mesmo que tenhamos treinamentos, cursos e dicas de como criar um filho e desenvolvê-lo, não há um manual para fabricar o humano. Um sujeito sempre está à sua própria revelia: ele precisa existir pelo menos no discurso dos pais, dos cuidadores, e isso parece determinar o quanto irá ser feliz ou não. Menciono isso porque muitas pessoas falam dos movimentos agressivos como produto do social, mas o social está aí, dentro de cada um de nós.
De onde surge a propensão a ser uma criança ou adolescente que pratique o bullying? É possível identificar e prevenir essa propensão?
Não existe propensão, não há como medir ou predizer isso, embora algumas pesquisas tentem rastrear comportamentos especialmente as de genética, sabemos que prevenção se inicia cedo, com a possibilidade de falarmos sobre o assunto, inclusive. Outra questão importante: claro que ambientes hostis geram respostas hostis e violência gera violência, mas também o contrário. Há casos em que os sujeitos querem mudar, querem fazer diferente, e conseguem modificar comportamentos, simplesmente porque entendem de seu processo pessoal, e reconhecem seus limites.
Quando a questão do bullying, seja para quem sofre ou pratica, vira uma questão a ser tratada por um psicólogo?
Em tese, sempre deveria ser. Pois, se há fumaça, há fogo. E o mínimo sinal de sofrimento precisa de um olhar mais detalhado.
Quais os avanços que é possível obter ao tratar uma criança ou adolescente vítima de bullying? É possível curar os traumas sofridos com essa prática?
Frustrações podem ocorrer todo dia e toda hora, a diferença está em como lidamos como isso. O “tratamento” psicoterápico, as análises, cumprem a função de possibilitar um novo olhar sobre si mesmo. Lembro de uma cena de um filme onde o personagem pergunta a um profissional de saúde se ele o está escutando, e, talvez, essa deva ser uma pergunta muito pontual: será que estamos escutando as pessoas, será que estamos escutando a nós mesmos? Escutar-se é, por definição, um ato complexo que não implica somente sonoridade. Podemos dizer que é um estado de espírito, de afetação e acolhida emocional.
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