Essa é uma daquelas histórias que nos enganam à primeira vista. Nesse enredo há o conhecido gaúcho de pilcha, com uma bela guaiaca adornada em prata e na cintura uma faca cuja bainha é quase um afresco barroco. Ah, sim, e tem o cavalo, cuja investidura desde a cela até os arreios e freio, são de prata ou têm detalhes cunhados no metal precioso. Mil vezes folheamos livros de história com essas imagens e poucos são levados a perguntar: e essa prata, veio de onde?
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Nesta trilha, sinuosa e cheia de surpresas e desdobramentos inacreditáveis, como a própria vida, nos coloca a percorrer um caminho sem fim. Os gregos cunhavam moedas em prata e as civilizações pré-colombianas, como os incas, produziam peças religiosas em prata. Aliás, o inca Huayna Capac, que residia em Cuzco, era chamado de rei Branco justamente porque em Potosí haviam uma montanha de prata sob o solo sagrado da cidade. Enquanto que a humanidade se desenvolvia sob a égide grega, que avançava em território, mas também nas questões cultuais e filosóficas, no outro lado do mundo, os incas ainda eram uma espécie de lenda.
Nesta reportagem vamos entender como Potosí torna-se a meca da prata no mundo, e de que forma esse pampa que abarca o sul do Brasil, mais Argentina e Uruguai acaba por ser uma trilha importante na história da prata. E ainda, como Caxias do Sul entra nesse cenário. Mas antes disso, é importante ressaltar que mercado é esse da prata. A pesquisadora Véra Stedile Zattera, no livro Beretta, que discorre acerca do centenário da joalheria caxiense (1917-2017) nos dá um panorama econômico, e por tabela, cultural. Ela escreve:
"Atualmente, os países latino-americanos — principalmente Chile, Bolívia, Peru, Colômbia, Equador, Honduras, Nicarágua e México (terceiro maior produtor mundial) — respondem por 38% da produção mundial de prata. No Brasil, a prata é obtida no Morro Velho, nas Minas Gerais (125kg para cada tonelada de ouro), no Paraná e na Guanabara".
Véra, que tem um trabalho vigoroso quanto à pesquisa do gaúcho, desde a indumentária e até mesmo na prataria, inclusive tem um livro com esse enfoque lançado em 2016, entende que aos poucos há um maior interesse das pessoas por peças especiais e exclusivas. Corroborando desse pensamento está a prefeitura de Bento Gonçalves.
Entre os dias 10 a 13 de outubro foi realizado o 2º Encontro Internacional de Prateiros, com a presença de profissionais de cinco países, Brasil, Argentina, Bolívia, Chile e Peru. Há um mercado ressurgindo, com força, com maior representatividade na Argentina, e agora, com essa experiência bento-gonçalvense, que além de realizar o encontro já fez nascer a Escola de Artes Santo Elói, que têm formado novos prateiros.
Bento de olho na prataria
Fazer história é mudar o curso da vida. E nesse aspecto há dois personagens importantes que merecem destaque nesse ressurgimento do ofício de prateiro no Brasil. Um deles é Darci Poletto, atual diretor da Escola de Artes Santo Elói, que é um dos grandes responsáveis por lutar pela concepção, construção, ocupação da Casa das Artes, pilar da cultura em Bento Gonçalves. O outro, é Raul Sartor Filho, artista prateiro e o oficineiro responsável por cativar e ensinar novos interessados em aprender como produzir obras exclusivas a partir do manuseio do metal precioso. Juntamente com o argentino Horacio Bertero, chamado pelos demais prateiros de mestre, são os responsáveis pela coordenação do 2º Encontro Internacional de Prateiros.
— Há dois anos, realizamos a primeira edição, com a presença de 24 artistas, a maioria da Argentina, mais alguns alunos da Escola de Artes Santo Elói. Neste ano, saltamos de dois para cinco países representados, e aumentamos o número de artistas para 35. Tivemos ainda uma peça que um colecionador nos cedeu, da reprodução de uma pintura, gravada em prata, datada de 1830 — revela Raul Sartor Filho.
O homenageado deste encontro foi Armando Néstor Ferreira, que além de mestre prateiro é diretor da escola municipal de Olavarría, que ensina o ofício. Inclusive, em Olavarría foi realizado, em 1992, um encontro nos moldes a que Bento inspira-se.
— O mais interessante é que há aqui uma escola que já está dando frutos. Estes que estão aprendendo serão os próximos mestres. Se hoje começou uma pessoa a aprender em Bento Gonçalves, dentro de 10 anos haverão mais 20 ou 30. Vão começar a vir para Bento interessados de outras cidades e estados, pode ter certeza disso _ acredita Horácio Bertero, que lançou, em Bento, o livro El Bermejo - Una ruta hacia la plata en el siglo XVI, que conta a história de um caminho por onde foi possível chegar ao coração da prata, em uma região onde hoje é o Peru, ao pé de Potosí, naquela altura o maior minério, que fazia parte do Império Inca.
Bento Gonçalves sinaliza assim que está alinhado aos novos tempos. É importante resgatar a história para sustentar a cultura no futuro, e de quebra, ainda sinaliza estar atenta a um mercado que está para voltar à cena.
— Mesmo lutando contra uma momento em que ostentar é ter o carro do ano ou um novo celular, acreditamos, sim, que somos responsáveis por essa mudança. Todos os artistas que participaram da exposição exibiram peças exclusivas e feitas de modo artesanal. Percebemos que o consumidor de um modo geral está cansado das peças iguais — defende Raul.
Bento Gonçalves promete realizar o próximo encontro daqui há dois anos, ampliando ainda mais o número de países e de participantes, com artistas interessados em vir à Serra desde a Europa.