Distante 80 quilômetros de Vacaria, na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina, Pinhal da Serra é destas cidades onde os cães dormem em pleno asfalto da avenida principal sob o sol do meio-dia. Seus dois mil moradores convivem atualmente com a ameaça de voltar a ser um distrito, caso seja aprovada a proposta do Governo Federal de extinguir municípios com população inferior a 5 mil habitantes (com apenas 4,3% de arrecadação própria, é o município gaúcho com menos de 20 mil habitantes menos capaz de se sustentar).
Nessa terra de população predominantemente rural funciona desde 2016 o Parque Arqueológico de Pinhal da Serra. A três quilômetros da área urbana, o conjunto de sítios guarda vestígios de uma aldeia que existiu há mais de mil anos, formada por índios da etnia Proto-Jê, que migraram para o Sul do Brasil há quase dois mil anos. Apesar do frio e dos ventos fortes da região, os Je, ancestrais das tribos kaingang e xokleng, teriam se estabelecido no local devido ao fácil acesso à água do Rio Pelotas e a vasta mata de araucária, que fornece pinhão e atrai roedores para a caça. Para se abrigar, construíram refúgios semi-subterrâneos, cujos vestígios foram encontrados por arqueólogos que iniciaram as escavações quase duas décadas atrás. As marcas deixadas no solo ajudam a entender melhor a luta pela sobrevivência, a organização em sociedade e os rituais sagrados dos primeiros habitantes da Serra.
Coordenado pela arqueóloga e professora da UFRGS Dra. Sílvia Copé, que à época pesquisava moradias subterrâneas em Bom Jesus, também na Serra, o trabalho iniciou em 2001 e se estendeu por 12 anos, entre temporadas de pesquisa de campo e de análise em laboratórios. Foi custeado pela Usina Hidrelétrica Barra Grande, a Baesa, como contrapartida para sua instalação no Rio Pelotas, entre Pinhal da Serra e Anita Garibaldi-SC. A riqueza de sítios arqueológicos encontrados motivou a construção do parque, numa área de seis hectares, tendo sua construção viabilizada como compensação da Baesa pelos danos ambientais provocados durante sua instalação.
– A empresa chegou muito antes dos arqueólogos, quando deveria ter sido o contrário. Ao fazerem os dormitórios e refeitórios para os trabalhadores, muitos sítios foram destruídos. Protocolei uma denúncia no Iphan e a empresa admitiu a culpa. Propus então o projeto em que a Baesa financiaria a escavação de sítios que não haviam sido afetados, para produzirmos conhecimento. O parque e o circuito turístico foram um desdobramento cultural do projeto. Travamos uma batalha muito dura para fazer com que o dinheiro da multa fosse mantido aqui, pois normalmente o Iphan receberia essa verba e aplicaria em qualquer parte do Brasil – explica a pesquisadora.
Casas, cemitério e ferramentas
No sítio principal, que os visitantes podem observar após caminhar por uma passarela de madeira de 200 metros, os arqueólogos descobriram 11 casas semi-subterrâneas, a maior delas com oito metros de profundidade e 22 de diâmetro. Eram habitações cobertas com folhas de palmeira e sustentadas por vigas de madeira, conforme explicam placas distribuídas pelo trajeto. A análise dos materiais retirados do solo permitiu entender a função primordialmente doméstica de cada cômodo – como o convívio ao redor da fogueira e o espaço para armazenamento de alimentos – além da ligação entre as peças por corredores.
A escavação também revelou um cemitério e seis montes funerários que dão pistas sobre como eram os rituais de cremação, realizados em fogueiras acesas dentro de estruturas circulares reservada para a cerimônia. Ainda foram catalogadas diversas ferramentas de pedra lascada, utilizadas para o corte e a tritura de alimentos, e fragmentos de vasilhas de cerâmica.
Os achados fascinaram pesquisadores de diversas universidades brasileiras e também do exterior, como a University of Exeter, da Inglaterra, que enviou um grupo de estudantes para ajudar a escavar e desenvolver pesquisas em conjunto com os brasileiros. Diversos artigos foram publicados e estão disponíveis na internet, em português e em inglês. Sílvia Copé acredita que ainda há muito a ser pesquisado:
– Tão interessante quanto as moradias é descobrir como era a interação daqueles indígenas com a paisagem. Entender, por exemplo, que suas casas ficavam nas encostas e os cemitérios nos topos dos morros, com vista para outros morros onde haveriam outros cemitérios, como um sistema de localização. São estudos para outras duas décadas. Um mês de pesquisa gera um ano de perguntas.
Relíquias para os moradores
Assim como os hábitos de construção semi-subterrânea, a produção em cerâmica e a criação de ferramentas de pedra foram abandonadas gradualmente após os primeiros contatos dos índios com os colonizadores europeus, no final do século 17 e início do século 18.
Por todo o território onde houve ocupação indígena, principalmente nas zonas rurais, é comum os moradores depararem com artefatos que serviram àquelas populações. Principalmente em áreas de lavoura, o arado da terra traz à tona muitos objetos que viram peças de coleção, como pontas de flecha, raspadores de couro e ferramentas de diferentes formatos, utilizadas para o corte e tritura de alimentos. Também é comum subir à superfície pedaços de recipientes de cerâmica, cuja existência de fuligem faz associar ao cozimento de comida.
Fotógrafo aposentado, Natalino Nunes da Silva, 76, é um dos moradores de Pinhal da Serra conhecido pela significativa coleção de artefatos indígenas. Nas últimas décadas, atuou como ajudante de diversos pesquisadores em missões pelo Estado. Quando encontra uma pedra, recorre a um especialista para atestar a autenticidade.
– Muitas pedras eu ganhei, outras eu encontrei. A gente chega na propriedade e encontra uma pedra que há mil anos foi uma faca usada para cortar carnes, hoje sendo usada como escoro de porta. Muitas vezes as pessoas não sabem o valor histórico do que guardam em casa – comenta o aposentado.
Responsável pelo serviço de manutenção do parque, Isaias Costa da Silva, 32, conta que, na infância, sua diversão era caminhar pela mata de araucárias. Pelo caminho, recolhia pedras que, só alguns anos mais tarde, durante as aulas de História, descobriu que se tratavam de utensílios milenares da cultura indígena.
– A gente descia até o rio caminhando pelo meio do mato, caminhava uns 12 quilômetros. Nisso achava as pedras bonitas e guardava, mas sem ideia do que se tratava. Um dia minha professora de História trouxe os alunos para visitar as escavações e aí descobri que aquelas pedras eram ferramentas para os índios. Como sou descendente de bugres (índios), dou um valor muito grande – relata Isaias.
Oportunidade para educação e turismo
Dois braços do projeto apresentado ao Iphan para sustentar a construção do parque arqueológico, a utilização para a educação e a exploração para o turismo são objetivos apenas parcialmente realizados em Pinhal da Serra. Embora os portões estejam abertos ao público e visitas técnicas e oficinas de Educação Patrimonial tenham sido realizadas com escolas de Pinhal e municípios próximos, a intenção para o futuro é oferecer um passeio mais atraente, uma vez que boa parte da experiência ainda fica apenas na imaginação do visitante leigo.
– Seria importante se pudéssemos ter no parque uma réplica de uma casa subterrânea, para que o visitante pudesse ter uma noção de como era a vida nessas moradias – destaca a historiadora Elisandra Giordano, que atua no município.
O parque conta com um lago, uma vasta área de mata de araucária e um amplo gramado utilizado para os moradores fazerem seus piqueniques nos finais de semana. Por ser uma área de preservação, há árvores derrubadas pela ação de ventanias recentes, mas que só podem ser retiradas com autorização. Há um container com banheiros e a parte superior da estrutura serve como observatório de pássaros, de onde se pode apreciar pica-paus, tucanos, tirivas e outras espécies. Devido à quantidade de árvores, a fauna é bastante diversa. Também há pelo local bugios, primatas-símbolo da Serra.
– Nosso sonho é fazer um museu que reúna artefatos da escavação e também as relíquias dos moradores. Muitos se comprometem a fazer a doação, desde que o museu esteja localizado dentro do parque. Acredito que teremos o apoio da Baesa, mas precisamos da autorização do Iphan – destaca o secretário de Turismo de Pinhal da Serra, Cláudio Oliveira.
Visitantes do Xingu
Em maio deste ano, Pinhal da Serra foi um dos oito municípios gaúchos visitados no Rio Grande do Sul por índios do Parque Indígena do Xingu, reserva étnica no Mato Grosso. O grupo de oito visitantes esteve em escolas falando aos jovens sobre sua cultura e a importância de preservá-la. Também visitaram o parque arqueológico e fizeram uma oração aos ancestrais.
– Eles reconheceram o Parque de Pinhal da Serra como uma ação indigenista, ou seja, uma ação que atende aos interesses de preservação da sua cultura. Nós, brancos, reconhecermos esse esforço, não tem o mesmo peso e importância do reconhecimento da própria comunidade indígena – destaca o secretário.
Na mesma ocasião, acrescenta Oliveira, houve uma reunião na sede da usina hidrelétrica Baesa na qual foi colocada a possibilidade de se ter, junto ao parque, um espaço de acampamento para grupos indígenas em deslocamento:
– Seria um local para que os índios de qualquer etnia tenham um porto seguro para ficar. Muitas vezes a gente vê esses povos ocupando as praças da cidade e expostos a todo tipo de risco e preconceito.
Seja em fase de sonho ou de projeções, a intenção da humilde Pinhal da Serra é construir um futuro mais cada vez mais comprometido com o passado.
Mais
O primeiro nome do Parque Arqueológico Pinhal da Serra foi dados pelos arqueólogos: Parque Arqueológico do Homem do Planalto da Araucária. A mudança se deu após o fim da parceria com a UFRGS para a pesquisa.
Leia também
Mérito Gigia Bandera premia as trajetórias de sucesso da Serra Gaúcha
Encerramento da exposição "Santificados", em Caxias, completa um ano
Comunidade confecciona adornos de crochê para árvore de Natal em Nova Prata