Zica recebe a reportagem com abraços afetuosos, em frente ao portão da Tem Gente Teatrando. Prestes a completar 55 anos, sendo 37 dedicados à arte, a caçula de Vanir e Ida Martini Stockmans se descreve como uma "pessoa tímida, que prefere o recolhimento".
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Tem Gente Teatrando completa 30 anos dedicados à arte em Caxias do Sul
O primeiro contato com o teatro foi ainda na infância, em sua terra natal, Nova Prata, quando teve o olhar despertado para um grupo de artistas que se apresentava no salão da escola. A imagem de encantamento permaneceu, mesmo que encarar a arte como profissão não estivesse nos planos.
Aos 15 anos, cursou magistério com a intenção de ser professora. Dois anos mais tarde, mudou para Caxias do Sul, para cursar a licenciatura plena em Educação Artística. Foi nesse período que o teatro voltou para ficar. Inscrita numa oficina ministrada pelo diretor Décio Antunes, percebeu que estava ali a sua grande paixão.
Em quase uma hora de conversa, manteve olhar firme e voz serena ao recordar os primeiros anos da Tem Gente Teatrando, os momentos marcantes à frente da companhia e as personagens que deu vida no palco. A atriz, que nesta semana foi uma das homenageadas com o troféu "Guardião da Aldeia", do Sesc, pelo comprometimento com as pautas culturais, também avaliou o cenário adverso para a criação artística.
Almanaque: Você imaginava que a TGT chegaria aos 30 anos sendo referência não só em Caxias, mas no Estado?
Zica Stockmans: Acho que não. Dou os créditos dessa consolidação não à coragem ou ao planejamento, mas justamente à distração dessas coisas. No início, eu estava completamente distraída do fato de ser uma mulher artista e empreendedora. Foi uma matemática muito simples: busquei uma sala comercial e calculei num caderninho quantos alunos eu precisava para manter tudo funcionando. Claro que exigia empenho, mas eu não percebia essas dificuldades. Se eu tivesse consciência disso, talvez não tivesse começado e hoje não estaríamos aqui.
Como nasceu a paixão por formar novos artistas?
Entendo que o período da adolescência é muito sensível e o teatro pode dar um suporte importante, como aconteceu comigo. Não só pelo acesso aos espetáculos, que já é transformador, mas pelo processo de preparação para atuar, que nos leva a níveis de percepção que dificilmente acessaríamos na vida cotidiana. Claro que, em vários momentos, fiquei com dúvida se tudo isso não era apenas uma viagem minha, achar lindo e transformador, mas passamos a receber muitos depoimentos de ex-alunos dizendo que o teatro fez a diferença.
Qual espetáculo mais te marcou?
Todos deixaram marcas, mas acho que O Torto e seu Duplo foi diferente, porque precisei fazer um mergulho na personagem e, mais do que construir em cima da atriz, precisei me desconstruir, desistir de muito do que conhecia. Foi um espetáculo que exigiu uma entrega meio dolorida.
A dor faz parte da vida do artista?
Acredito que sim. Até hoje, não encontrei esse lugar de conforto para entrar em cena e muito raramente ouço depoimentos de atores que tenham conseguido. O palco é um lugar de muita exposição. Tem prazer, mas também tem dor, porque você tira a própria pele para se abrir diante das pessoas.
Memórias de uma Solteirona fez muito sucesso com o público. Como foi o mergulho na personagem?
O Memórias me trouxe um aprendizado bem importante: quando a gente cria, não precisa buscar referência muito longe, basta se conectar com o que é nosso. Foi um espetáculo amadurecido ao longo de muito tempo, com cenas da infância, com coisas que minha tia contava pra minha mãe… De certo modo, uma montagem despretensiosa que acabou fazendo sucesso. Lembro que, quando cheguei para apresentar em Belém do Pará, imaginava que poucas pessoas assistiriam, mas o teatro acabou lotando, com mais de 600 pessoas rindo com a gente. Foi incrível.
Caxias do Sul é uma cidade que gosta de teatro?
Se fizéssemos um gráfico, eu diria que começamos lá embaixo, tivemos um período de evolução, com investimento público em arte e aumento de plateia, mas depois estacionamos e começamos a cair. Há uma campanha de demonização da arte, dizendo que o artista é vagabundo, que não trabalha… Isso não corresponde à realidade.
Como a arte deve se posicionar diante dos cortes de investimentos e dos ataques nas redes sociais?
Precisamos nos fortalecer cada vez mais. Houve um período em que os artistas ficavam em seus núcleos, desenvolvendo seus trabalhos, e parecia ok para a época. Agora, o momento pede união entre os trabalhadores da arte e da economia criativa. Se eu precisar abrir esse espaço para que outros grupos consigam trabalhar, com certeza vou fazer. Algumas vezes dá vontade de desistir, mas essa não é a hora.
Que legado você quer deixar com a Tem Gente Teatrando?
Ainda estou refletindo sobre essa questão. Em Caxias, terra do trabalho, usam muito a expressão "perpetuação da empresa". Não sei se isso cabe à Tem Gente, assim como não coube lá no início. Uma coisa me dá tranquilidade: o legado fica com as pessoas. Se no futuro esse espaço físico não existir mais, tudo bem. A pedra foi jogada no lago e já fez suas ondas. Me sinto bem com isso.