Sinopses de livros são um indicativo, às vezes até uma obrigação de informar ao leitor, como no caso de um texto jornalístico. Mas há obras que não cabem em quatro ou cinco frases. É o caso de Os donos do inverno, do porto-alegrense Altair Martins, a ser lançado nesta quinta-feira, dia 31 de outubro, às 19h, na Livraria Do Arco da Velha, no centro de Caxias do Sul.
A sinopse nos diz: "Apesar de viverem perto um do outro, os irmãos Elias e Fernando se evitam há vinte e quatro anos. Mas um acontecimento inesperado força o professor Elias a pedir a ajuda de Fernando, taxista, para realizar o antigo sonho de seu falecido irmão mais velho. Lado a lado num táxi, eles terão de fazer como os puros-sangues e seguir em frente, correndo pelo frio do Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina para levar os ossos do jóquei C. Martins até a grande noite do turfe em Buenos Aires".
Mas é quase nada em se tratando da complexidade e demais camadas de leitura a que a obra propõe ao leitor. Altair, que estampa no currículo prêmios importantes como o São Paulo de Literatura em 2009, o Açorianos em 2009 e 2012 e o AGES em 2009 e 2015, além de ter sido finalista do Jabuti em quatro ocasiões, é professor de Escrita Criativa, na PUCRS e, da Escola Apoio, de Caxias. Para além da sinopese, apenas uma entrada de leitura, ou melhor, uma cancha de corrida.
Em um dos trechos, Altair escreve: "Cavalos não olham de frente, cavalos só olham de lado, o Carlos nos disse".
— Os cavalos tornaram-se inevitáveis numa história que tem como personagem central um jóquei morto, como foram inevitáveis na trajetória da humanidade (nenhum bicho, em desparecendo da História, altera tanto nosso presente). Creio que os cavalos traduzem o que deixamos de ser: seres que não esperam o truque, seres que olham de lado para respeitar o espaço do outro, seres que tiram da terra o que comem, seres que veem o mundo de modo tautológico como a um haicai, seres cuja língua não tem "eu". Seriam os cavalos a minha utopia? — explica e despista, com a mesma voracidade da sua escrita impressa em Os donos do inverno.
A seguir, leia trechos da entrevista concedida pelo autor ao Pioneiro.
Pioneiro: Tu entende que Os Donos do Inverno e as tuas demais obras estão mais vinculadas a uma literatura sulista contemporânea (com ecos na Argentina e Uruguai, por exemplo) do que a uma literatura brasileira?
Altair Martins: Não. Claro que o lugar onde vive nossa ficção tem dívidas com o lugar onde pisamos. Mas tanto em A parede no escuro (meu primeiro romance, de 2008, que discute o esfarelamento da figura paterna na estrutura da família brasileira) quanto em Terra avulsa (segundo romance, de 2014, que versa sobre a força mítica da mãe e da nação, com passagens importantíssimas que se passam na Nicarágua), discuto Brasil, o Brasil rasteiro onde o patrão limpa os pés. Em Os donos do inverno, pretendi, mais que um passeio pelos frios do sul, falar sobre a cisão de dois irmãos que é também, de alguma forma mais subterrânea, a cisão do Brasil atual (o livro se passa em 2015). Evidente que somos a parte do Brasil que compõe a pampa literária tão explorada pelos hermanos, como também somos a parte do Brasil que compõe a nação guarani que, nesse caso, vai até o Paraguai. Mas o livro não deixa de dialogar com este nosso país rachado onde estamos vivendo em 2019.
Teu livro trata de uma família desajustada. O que há de social nessa abordagem particular?Talvez a questão familiar (microcosmo da questão "povo") parta da fala da égua Onesita, no Hipódromo do Cristal. Diz ela que, para os cavalos, não há irmãos de criação. Busco discutir essa fratura forçada em termos de população brasileira, esse fascismo postiço de tentar mostrar-se diferente das outras pessoas quando, em verdade, como bem disse Darcy Ribeiro, somos uma mistura - e digo mais, uma mistura que deu certo, sim, apesar do esforço de sectarismo social. Quando colocamos na miscigenação a causa de nossos atrasos (e ela foi estupidamente marcada como a razão do nosso fracasso desde o século XIX), estamos justamente colocando a sujeira para baixo do tapete. Isso ocorra porque talvez não saibamos nos olhar no espelho, nem tenhamos critérios ético e estético legítimos para reconhecer nosso fiasco enquanto povo. O livro aborda uma crise entre irmãos (um do sul, outro do norte) para falar que somos todos vira-latas, somos todos crioulos: se iguais por natureza, desiguais por injustiças sociais históricas que se infiltram até mesmo nas mínimas relações familiares.
O quanto dessa história que tu relata é real?
O jóquei C. Martins tem o mesmo nome do meu pai, o jóquei Carlos Martins, falecido num acidente de moto em 1981. Meu pai tinha uma égua chamada Onesita (que não era tordilha, mas castanha). Usei grande parte das coisas que aprendi sobre o turfe, manejando também as memórias do meu falecido tio, o jóquei J.N. Martins. Transformei, portanto, meu pai no irmão mais velho do Elias e do Fernando, que pouco têm a ver com meus irmãos Alex e Douglas (embora o Douglas seja meu irmão de criação), a não ser pela foto que inicia o livro: na foto real estamos os três sentados com brinquedos e, pela data, o Douglas ainda não era meu irmão, mas um amigo de férias na casa do avô, nosso vizinho. O pai do Douglas, seu Varci, casou com minha mãe, dona Mamedes, e assim nos tornamos irmãos. Mas o fundo de verdades tortas para por aí. Se o Fernando veio de Tocantins, é uma homenagem ao meu irmão de literatura, Jádson Barros Neves, que vive em Guaraí... Durante a viagem para Buenos Aires, os irmãos vivem coisas que coletei das viagens que fiz (algumas das de ida, outras dos retornos). Um livro é feito de sucata, sempre.
Há um trecho em que tu escreve: "Como vem sentindo, o assombro de toda a adolescência retorna para discutir as culpas, velar um corpo, fechar um luto". O que te provocou escrever sobre isso?
Talvez a base seja a perda prematura de meu pai, mesmo. Eu tinha 6 anos, e escutei tocarem Estrada da vida no enterro dele sem entender o que acontecia. Aos poucos, fui compreendendo quem ele era pelo buraco que deixou. Nunca me interessei pela história do jóquei, até que o professor Túlio Santos (saudoso mestre de Matemática) me contou a história de um jóquei com quem se dava muito bem: era meu pai. Fui buscar elementos, fotografias, memórias de parentes. Não sinto que esteja fazendo qualquer homenagem ou precise contar algo que necessitava ser contado. Não fiz algo biográfico. Considero que tinha um material legítimo (talvez a única herança que o meu pai deixou) - e que precisava aproveitar ao máximo.
Em outros dois trechos, diz: "É absurdo: dividimos domingos, moedas de troco, perfume, moscas, água mineral. Só não acontecemos". (...) "Onde estivemos esse tempo todo, hein, Elias, hein, Fernando? Estivemos enterrando alguém que o escuro não se negou a cobrir. Estivemos morrendo". Esse é o resumo dessa relação entre irmãos que muito tempo estiveram juntos, mas nada conceberam?
Sim, mas é também o resumo de pessoas que vivem tão próximas e evitam-se por 24 anos, como é o resumo de um país que talvez não seja tão grande assim. Talvez estejamos vivendo cada vez mais na distância (com a ilusão de proximidade que as redes sociais trouxeram). Vamos viver e morrer do mesmo modo - ali ao lado -, e as pessoas vão continuar a comprar telefones novos.
AGENDE-SE
O quê: Lançamento de Os donos do inverno (Não Editora/2019), de Altair Martins.
Quando: 31 de outubro, às 19h.
Onde: Do Arco da Velha Livraria e Café (Rua Dr. Montaury, 1.570 - Caxias)
Quanto: O livro custa R$ 44,90
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