Eles estão em paradas de ônibus, nas calçadas e praças. Alguns escolheram esta vida, se dizem artistas de rua; outros, encontraram nas apresentações com diferentes instrumentos sua única alternativa de sustento.
Saiba que são os personagens que ganham a vida tocando nas ruas da área central de Caxias do Sul:
Fábula da vida real
A história de vida de Natália Caroline Portilho, 29, parece misturar-se com a fantasia e a ludicidade das fábulas que ela afirma representar por meio da música, com um xilofone que toca diariamente próximo ao Hospital Pompéia, no centro de Caxias.
O fluxo intenso de carros e pedestres da Avenida Júlio de Castilhos, uma das principais da cidade, parece não interferir no som do instrumento que, acompanhado pelo sorriso da instrumentista, consegue capturar a atenção de muitos que passam pelo local.
Doze horas por dia, sete dias por semana, há quase dois anos, Natália, o xilofone e uma lata de biscoitos ficam instalados no mesmo ponto da cidade. Com um figurino caprichado, de mote infantil, a paraense encanta crianças, adultos e idosos, além de uma clientela fidelizada que deposita moedas na lata com frequência, por pura admiração.
— Passo todos os dias aqui e sempre admirei ela. Tem muita gente que reclama de tudo e ela fica o dia inteiro com um sorriso no rosto — comentou a administradora Neiva Ulian, 53, enquanto entrevistávamos a emblemática personalidade.
A todos aqueles que alimentam uma certa curiosidade a respeito da "moça do xilofone" (confira o vídeo abaixo) — e também aos que sequer faziam ideia de sua existência — eis a seguir um arriscado resumo da complexa, inusitada e quase que surreal vida de Natália.
Nascida e criada em Belém, a relação dela com as artes começou cedo, mas ficou ainda mais estreita em 2011, quando foi aprovada para o curso de Teatro na Universidade Federal do Pará. A vontade de viajar fez com que Natália abandonasse a graduação logo após cumprir o primeiro semestre, iniciando em 2012 uma jornada em busca de experiências.
De trabalho voluntário em seringais, plantações de cacau e cravo-da-índia, à peregrinação junto de estrangeiros em montanhas brasileiras, a viajante tinha na aventura um objetivo:
— Buscava experiências que me fizessem entender o Brasil e o que ele defende; onde estava perdido e onde esse povo estava indo. Ainda estou estudando isso e, agora em contato com juízes, também está sendo bom para entender — relata Natália, que luta na Justiça pela retomada da guarda do filho de quatro anos, perdida logo depois que ela mudou-se para Caxias do Sul.
A chegada de Ártico Real Nabucodonosor Portilho (nome que, segundo ela, faz referência à região do planeta ainda pouco conhecida; à realeza e tudo que é "real"; e ao rei da Babilônia), em 2015, estabeleceu regras antes inexistentes na vida de Natália.
— Trabalhei em diversas fábricas e vim para o Sul para trabalhar em uma empresa que exporta nozes. Procurava um lugar que oferecesse abrigo para nos instalarmos e fui orientada a vir pra Caxias. Aqui perdi a guarda do meu filho porque eu precisava viajar, estava ainda fazendo alguns trabalhos com circo e teatro, e precisava ir. Mas agora não viajo mais, sou uma boa mãe, não uso drogas, cigarro, nada dessas coisas, tenho responsabilidade.
Atualmente, Natália reside em uma casa que alugou no interior da cidade. Com o xilofone, ela encontrou na rua uma fonte de renda enquanto planeja o futuro ao lado do filho. As canções, que soam desconexas para quem ouve, segundo ela, contam fábulas sobre borboletas, nuvens e coisas límpidas. Mesmo tímida, ela busca manter o sorriso no rosto e a mente vazia.
— Tento não criar muitos pensamentos. Aqui passam muitos bebês, várias crianças lindas, toco canções bonitas para essas crianças.
"Estou aqui porque Deus mandou"
É da crença na religião evangélica, para a qual converteu-se em 2003, que Jandir Silva Subtil, 48, tira força e inspiração para cantar e tocar violão, quase que diariamente, em paradas de ônibus da área central de Caxias do Sul. A voz potente que entoa exclusivamente música gospel ecoa pelas proximidades de onde ele se apresenta pedindo, em troca, qualquer valor em dinheiro.
— É Deus que toca no coração da pessoa para que ela ajude. A Bíblia diz que o trabalhador é digno de salário. O dinheiro vem do povo, mesmo para quem trabalha com carteira assinada.
Natural de Encruzilhada do Sul, Jandir começou a tocar violão aos 12 anos. Naquela época, já trabalhava no campo com a família. Mudando-se para a cidade, chegou a morar em diversos municípios, sempre tocando aquilo que ele classifica como "música mundana". Neste domingo, ele completa dois anos trabalhando como músico de rua, atividade que provém o seu sustento desde que deixou o último emprego formal em Farroupilha.
— Deus me mostrou exatamente como estou aqui, com essa caixa na frente do violão. Lutei com ele e disse que não ia vir, aí Jesus entrou em cena e perguntou por que eu não queria. Falei que eu tinha medo e vergonha. E tinha mesmo, imagina sentar no meio do povo, praticamente pedindo. Jesus falou que "o medo não vem de mim e todo aquele que se envergonhar de mim diante dos homens, eu também terei vergonha deles diante do meu pai". Então, não teve outro jeito, eu só tive que agarrar e fazer isso aqui porque Jesus é o dono da vida, ele mesmo diz que sem ele nada podemos fazer.
Desde então, Jandir canta e toca, por três horas ao dia, músicas que, segundo ele, "levam a palavra" (confira o vídeo abaixo).
— Assim como tem psicólogo que, muitas vezes, ajuda as pessoas com palavras, o Evangelho ajuda as pessoas através das palavras, eu vivia uma vida completamente desgraçada antes de me converter. Hoje sou feliz fazendo isso porque sei que Deus não me mandou pra cá em vão, ele sabe que muitas pessoas precisam ouvir a palavra dele. Não fiquei rico, mas graças a Deus, nunca faltou pão na minha mesa, nem um teto sobre a minha cabeça.
A "palavra" de Jandir nem sempre agrada a todos. Ele conta que uma vez foi expulso com ovos de uma praça de Bento Gonçalves. Ainda assim, uma parcela da plateia diz sentir-se satisfeita com a presença do cantor. É o caso da babá Isabete Sousa Rocha, 53, moradora no Parque Oásis. Ela conta que muitas vezes, quando vai pegar o ônibus para casa, no início da tarde, acaba acompanhando a apresentação de Jandir.
— Eu gosto, às vezes a gente está tão para baixo, o serviço não dá certo, e a gente se sente melhor.
Faça chuva ou faça sol, se o frio não for muito intenso, em alguma parada caxiense, a mensagem que brota da voz de Jandir será escutada, quer goste ou não, pelo compromisso que ele mesmo diz ter assumido com Deus.
— Não é porque eu queira tá aqui, estou porque Deus mandou. Por mim estaria em uma empresa, trabalhando, mas uma coisa que a gente não pode ser é negligente. Se um patrão manda fazer alguma coisa, temos que fazer. Assim foi com Deus. Ele me disse: vai porque eu estarei contigo.
O baile do gaúcho Lacerda
A figura de Roni Prestes Lacerda chama a atenção de quem passa pelas paradas de ônibus da Estação Ópera ou da Catedral, onde ele costuma se apresentar em Caxias do Sul.
Diariamente, ele leva a música nativista gaúcha que tanto gosta para o centro da cidade, para divulgar seu trabalho e vender os seus discos. São quatro CDs gravados pelo cantor, com músicas autorais, parcerias e regravações de figuras consagradas do tradicionalismo que o inspiram, como Gildo de Freitas.
São as trilhas instrumentais gravadas para estes discos que embalam as cerca de quatro horas diárias de Lacerda na rua. Ele garante o baile usando apenas um pen drive, conectado a uma caixa de som, e um microfone, que usa pra cantar e interagir com as pessoas que passam (confira o vídeo abaixo).
— Canto desde novo só que os grupos de empresários nunca me deram oportunidade de cantar em lugar nenhum. Fiz muita propaganda no rádio, pra fazer teste nos conjuntos, mas nunca ninguém me convidou — relata.
Como um bom gaúcho, sempre pilchado, Lacerda adora contar um "causo". Criado na campanha, no município de Canguçu — próximo a Pelotas — ele afirma ter 80 anos, apesar do registro de nascimento ter sido feito somente em 1952. Até os 30 anos de idade trabalhou na "fazenda dos Papini" e somente em 1989 chegou em Caxias do Sul com a ideia de fazer oito pavilhões. No fim das contas, acabou fazendo mais de 50.
Um acidente de trabalho, ocorrido há cerda de 20 anos, fez com que ele precisasse deixar a atividade. Foram tempos difíceis:
— Tive que arrumar uma carrocinha e catar papelão, mas graças a Deus, consegui dar a volta.
A dificuldade o impulsionou a investir na carreira musical. Com apoio de pessoas do meio, ele gravou o primeiro disco intitulado "Sonho Conquistado". O disco abriu uma fase de aproximadamente oito anos trabalhando em bailes e sendo reconhecido pelas músicas autorais. Com o tempo, porém, seu trabalho começou a ficar esquecido na estante da loja onde disponibilizava seus CDs.
— Saía um a cada dois meses, era difícil vender, na rua, mostro meu trabalho e o povo valoriza bastante. Tenho que agradecer muito a atenção do povo, porque eles me dão muito valor, compram os CDs, me dão muita gorjeta, estão sempre dando o incentivo pra que eu continue — comemora Lacerda, que optou pelo formato de rua há poucos meses e conta com a parceria de sua companheira, também cantora, Mila Castilhos, 79.
Eles vivem juntos há 13 anos e até gravaram músicas juntos.
— Eu tenho músicas minhas, bem românticas, mas quem canta na rua é ele, eu acompanho porque ele não enxerga — afirma Mila.
Há dois anos, um glaucoma fez com que Lacerda perdesse completamente a visão. Mas ele não se abateu, bem pelo contrário, a dificuldade parece ter só aumentado o tanto de sabedoria que o gaúcho de Canguçu carrega:
— Judiou bastante no começo, hoje não, porque Deus não dá a cruz que a gente não possa carregar, né menina? A gente tem que ter coragem, fé em Deus e saber enfrentar a vida, não adianta.