Primeiro ato
Na sala de criações, invenções e traquinagens do Grupo Ueba Produtos Notáveis, Jonas Piccoli divaga sobre os 15 anos de aniversário, a se comemorar neste domingo, a partir das 13h, com dança, música, cinema, literatura e, claro, teatro, no Moinho da Cascata, em Caxias. É difícil vê-lo despido dos personagens. Fora de cena, Jonas mostra-se politizado, mas não partidário. Diz estar preocupado com as situações de constrangimento pelas quais os artistas têm passado nos último anos.
Leia ainda:
Grupo de teatro Ueba completa 15 anos de carreira e comemora com programação especial em Caxias
– Cara, tem gente da Guarda Municipal que nos viu “crescer” e realizar várias apresentações na Praça (Dante Alighieri), mas de um dia para o outro, esses mesmos caras queriam impedir a apresentação de As Aventuras do Fusca... Vai entender! – diz Jonas, 40 anos, ator, diretor e escritor, gesticulando como quem ainda não compreende o sentido disso, apesar de ter sido lá nos idos de fevereiro de 2017.
Sentado em uma poltrona avermelhada e desbotada, Jonas diz que sente como se a vida fosse um grande espetáculo: fica difícil discernir quem é vilão ou mocinho – não só em Caxias, mas no Brasil e no mundo. Nessa peça metafórica, é como se o diretor tivesse se demitido e uma rebelião de personagens tomasse a cena de assalto.
Enquanto Jonas discorria sobre as dificuldades em seguir empregando gente através da arte, afinal de contas, em uma cidade economicamente efervescente, é o que interessa, Aline Zilli irrompe cena adentro. Nada disso fora ensaiado, mas é como se fosse. Porque há tanta sintonia entre Jonas e Aline, que um olhar ou um gesto aparentemente contido, é a deixa para um segundo ato. E felizmente há sempre um novo ato a seguir na história do Ueba.
Segundo ato
– Vamos falar de... – tento perguntar.
– Coisas menos tensas... – diz a atriz e produtora Aline, 32, interrompendo a sagacidade do repórter.
– Talvez seja... Vamos ver. Quando é que vocês perceberam que o teatro seria o caminho a seguir?
– Eu gostei de teatro, desde a escola. Mas nunca pensei que eu levaria isso a sério. Eu comecei a fazer teatro porque eu me mudei de onde eu morava – conta Jonas, em tom misterioso.
– Tu foi para onde? – pergunto.
– Tu já vai saber... – despista Jonas, fitando a Aline, de soslaio.
Depois da breve pausa, Jonas acomoda-se na poltrona e explica:
– Eu morava na Avenida Júlio, na frente do xis do Zé, em um prédio onde fica a loja Bergamaschi. Eu morava no primeiro andar. No meu quarto podia-se riscar as paredes, desenhar, fazer o que quisesse.
– E teus pais não falavam nada?
– Não, nada. Era de boa. Mas eu me mudei dali. E fiquei sabendo que depois de um ano, abriu uma escola de teatro onde eu morava, chamada Tem Gente Teatrando. Daí me inscrevi em uma aula inaugural só para saber como estava meu quarto. Fiz toda aula, mas o meu quarto tava fechado e eu não via nada. No final, a Zica (Stockmans, diretora da Tem Gente Teatrando), me pergunta: “E daí, gostou da aula?”. Eu disse pra ela, “Na verdade, eu me inscrevi só pra ver o meu quarto” – lembra, Jonas caindo na gargalhada, que a seguir complementa:
– “Tu que é o dono daquele quarto?”, perguntou a Zica. “A gente acabou pintando todo, mas fizemos fotos e guardamos, ó leva pra ti, de lembrança”. E lá se vão 23 anos... – conta Jonas.
E assim Jonas foi fisgado pelo teatro para nunca mais sair de dentro dele.
– Quer continuar daí, Aline? – enseja Jonas.
Fecham-se as cortinas. Fim do segundo ato.
Terceiro ato
– Eu sempre quis fazer teatro. Eu pegava a lista telefônica e ligava para as escolas. Então, eu perguntava o preço e dizia pra minha mãe: “O curso custa tanto...”. Ela respondia: “Não dá, não tenho dinheiro” – diz, Aline, imitando a mãe.
– E conseguiste estudar teatro? – insisti.
– A minha mãe sempre me negava, porque a minha família não tinha condições de me pagar um curso. Então eu passei a assistir teatro quando dava.
Passa o tempo do teatro escolar, e dos sucessivos nãos, e eis que Aline atende a um anúncio para trabalhar com quem?
– Aí comecei a trabalhar com o Jonas, na agência de propaganda que ele tinha. E nessa época o Jonas fazia um trabalho com atendimento em hospitais... – contava Aline, antes de ser interrompida.
– ... era um projeto que eu fazia com o Davi (de Souza, diretor de teatro), chamado Médicos do Sorriso, lá em 2004. Como eu precisava de mais alguém no projeto, eu resolvi levar a Aline – explica Jonas.
– E ele não sabia que eu gostava de teatro, porque eu não tinha feito nenhum curso ainda – recorda Aline.
– E além de não saber que tu gostava de teatro, ele desconfiava pelo menos de que tu gostava dele? – questiono.
– Não... – sorri Aline, fitando Jonas.
– Inclusive eu tinha uma namorada e a Aline também estava namorando – diverte-se Jonas, devolvendo o olhar apaixonado à Aline.
– Eu era o tipo de funcionária que até devolvia o salário se fosse preciso para ajudar a pagar as contas – revela Aline.
– Um dia eu falei: “Bah, que m* eu não tenho dinheiro para pagar todas as contas” – recorda Jonas.
– Olha, eu não gastei o meu salário ainda, então se quiser eu posso te devolver. Aí ele pegou de volta, e nunca mais me devolveu – conta Aline, em meio às gargalhadas.
E desde aquele fim de inverno de 2004, Aline e Jonas marcaram em suas vidas, e na história do teatro caxiense, o nascimento da parceria que tem nome e sobrenome: Ueba Produtos Notáveis.
Fim do terceiro ato.
Quarto ato
– De 2004 a 2006 nós fizemos de tudo! – reconhece Jonas.
– Foi muita experimentação... – complementa Aline.
– A gente encarava desde festinha de criança até teatro de rua com pernas de pau. É o que eu chamo da “fase da chinelagem” – diverte-se Jonas usando uma expressão do cult gauderiês.
Foi nessa época que surgiu um dos primeiros espetáculos do grupo, mas que não faz mais parte do repertório.
– O Gutto Basso (ator, cantor, músico e diretor teatral) nos convidou pra fazermos uma peça juntos – conta Jonas.
– A peça era sobre quê?, perguntei.
– Não sei bem ainda...A gente foi lá e apresentou! Foi a primeira crítica violenta que recebemos, escrita pelo Fabiano Finco (jornalista que trabalhou no Pioneiro) que dizia: “Improvisos ensaiados demais” – recorda Jonas, dando gargalhadas.
– Mas que peça era essa? – insisto.
– Pavão, o artista – responde Aline.
– Era uma b* mesmo. Mas o público gostou e pediu outra – defende-se Jonas.
– De fato, a peça foi criada no camarim, com figurinos que levamos no dia... – diverte-se Aline.
– A gente conta a nossa existência muito por conta do Prêmio Anual de Incentivo a Montagem Teatral, que surgiu em 2006. Vencemos o prêmio com o Auto da Alta, que foi a primeira peça de teatro de rua que escrevi e na época chamamos o Jessé (Oliveira, diretor de teatro porto-alegrense) para nos dirigir.
– Então, um dia o Richard e a Jussara Trindade, do Tá na Rua (grupo do Rio de Janeiro) nos disseram assim: “Vocês têm de parar de trazer gente de fora. Vocês têm de fazer a direção e a arte de vocês”. Aí que começamos a fazer o Fusca a Vela, que é de 2014 e outros espetáculos... recorda Jonas.
Fim do Quarto ato, mas sem fechar as cortinas, como se quebrasse a quarta parede, Aline e Jonas valorizam o passado com olhos fitos em muitos desafios futuros.
Moto-Contínuo
– Cara, eu nem sei fazer outra coisa mais na vida – sintetiza Jonas, que diz ter tantas ideias na cabeça que não sabe por onde começar.
Uma delas, Jonas antecipa, em primeira mão:
– Vamos estrear dia 2 de novembro, um espetáculo sobre a Vivita Cartier (poetisa caxiense, cuja biografia é escrita pelo jornalista Marcos Fernando Kirst), que era uma mulher muito à frente do seu tempo, uma revolucionária.
Daquele passado com influências de gente como Zica Stockmans, Daniela Carmona, Titetê, Palhaço Pirilampo, Ana Wuo, Carlos Simioni, Dilmar Messias, Luciano Wieser, Léo Bassi (Itália), Ana Wolf (Argentina), Jeremiy James (Austrália), o Ueba segue ávido e vívido, tendo como tutora a italiana Lina Dela Rocca.
Um salve e um forte uebaaaa com uma calorosa salva de palmas para o grupo que tem lançado um monte de produtos notáveis há pelo menos 15 anos. Seja a favor ou contra o vento, dentro de um Fusca à vela ou no meio do pampa querido, com trajes futuristas ou nariz de palhaço, o negócio é escrever e encenar, para fazer rir e chorar. Ser ou não ser artista, nem está mais em questão, apesar da maré inquieta. Porque navegar é preciso.
Confira a seguir uma galeria de imagens de alguns dos espetáculos do grupo Ueba:
Agende-se
O quê: Celebração de 15 anos do Grupo Ueba com abertura de exposição e atividades artísticas, em parceria com a Antessala da Primavera, com Erni Sabedot, Mônica Montanari e Cláudio Troian.
Quando: domingo, a partir das 13h.
Onde: Moinho da Cascata (Rua Luiz Covolan, 2.820 - Caxias. Fone 3028.8192 ou 98118.5150).
Quanto: Entrada franca.