O clima de suspense marca a trama da série Desalma, que a Globo está gravando na Serra desde o início de junho. E suspense também é o clima que se sente conversando com alguns moradores da cidade de Antônio Prado — onde a equipe da emissora passou quase um mês — que se envolveram de alguma maneira com a produção. Isso porque todo mundo foi amplamente orientado a não vazar qualquer possível informação sobre a série, que tem o trio Cláudia Abreu, Cassia Kis Magro e Maria Ribeiro como protagonista. Em todo e qualquer papo sobre as gravações surge um "não sei se posso te falar isso", um "ah, só não usa isso porque não temos autorização para divulgar" ou um "assinei um contrato dizendo que não podia falar nada". Tem mistério na ficção, e mistério na realidade.
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Mas se tem um assunto que está totalmente liberado para qualquer especulação e que, convenhamos, o povo serrano adora discorrer sobre diz respeito às características estéticas do local, que fazem tanta gente se encantar e querer enquadrá-las em telas do cinema e da televisão. Para os moradores mais antigos de Antônio Prado, ver a movimentação de um set de filmagem no Centro Histórico não é exatamente uma novidade. Em 1995, a rua principal da cidade foi coberta de terra para gravações do longa O Quatrilho, que depois concorreu ao Oscar.
— Na época, as gravações terminaram aqui dentro do meu estabelecimento — comentou o fotógrafo Bento Bernardi, 62 anos, apontando para o estúdio que mantém bem em frente à praça central de Antônio Prado.
Cerca de três semanas atrás, a mesma fachada (que, a propósito, permanece intacta) serviu de cenário para a série Desalma.
— Colaram aqui na frente um cartaz com a foto de uma criança desaparecida. Parece que tem algo assim na história da série — assoprou o fotógrafo à reportagem.
Seu Bernardi também estava orgulhoso por ter participado como figurante em uma das sequências estreladas pela atriz Cláudia Abreu:
— Me botaram outra roupa e um boné. Eu ficava lendo um jornal enquanto a Cláudia passava.
Mas, mais ainda, o figurante estava feliz com a possibilidade de mais uma vez reconhecer as paisagens de sua cidade em uma produção audiovisual.
— A partir de agora, sempre que me perguntarem de que cidade sou, vou dizer que sou de uma cidade cinematográfica — brincou.
Seguindo a pé pelo Centro Histórico, era possível ver alguns resquícios das gravações de Desalma. Na última quarta-feira, um dos prédios antigos da cidade ainda exibia em sua fachada uma inscrição escrita numa língua destoante em meio aos inúmeros sobrenomes italianos que povoam as placas de estabelecimentos de Antônio Prado. A Videolocadora Kaminski dá duas dicas importantes sobre a história de Desalma, primeiro que haverá uma parte da história ambientada nos anos 1980 e, segundo, que as famílias protagonistas são ucranianas. A "videolocadora" estava fechada no dia que a reportagem esteve na cidade, mas o salão de beleza que fica logo ao lado estava funcionando. A cabeleireira Clair de Fátima Lemos, 53, trabalha naquele ponto há 20 anos, mas nunca tinha tido a experiência de estar ao ladinho de um set de filmagem da Globo. Foram 15 dias de movimentação intensa por ali. E ela achou o máximo.
— Se tivesse uma vez por mês isso, eu ia adorar. Para mim foi maravilhoso, atendi mais de 15 pessoas da equipe deles. Teve um homem que veio cortar o cabelo, eu fiquei com vergonha de perguntar quem ele era, mas acho que era importante, porque o segurança ficou na porta — lembrou ela, que teve um incremento de 50% nos atendimentos do mês de junho por conta da presença da equipe global.
A alguns metros dali, também na Av. Valdomiro Bochese, outra casa que aparecerá em cena da série Desalma já perdeu a caracterização feita para as gravações.
— Eles envelheceram toda a parte de baixo da casa, pintaram como se tivesse limo. Eles repintaram toda ela para parecer velha e suja — contou Rafael Zambianco Grazziotin, 34 anos, que é um dos herdeiros do prédio tombado construído em 1930.
Tão logo terminada a gravação por lá, uma equipe começou a trabalhar para devolver a casa aos proprietários do jeitinho que ela estava antes. Grazziotin ficou muito contente com a experiência e, além da residência da família, ele próprio também deve aparecer em cena na telinha como figurante.
— Nunca tinha vivido isso, quando deram o "gravando", quase me mijei (risos). Era muita câmera ao redor — lembra.
Outra casa antiga (mais precisamente com 90 anos) que serviu de cenário para Desalma é o lar de Carolina Susin Beltrame, 75. Assim como os demais proprietários de locações usadas em cena, ela também assinou contrato com a Globo e não pode contar praticamente nada sobre o que foi gravado. Dias antes, porém, ela estrelou um "stories" no Instagram da atriz Maria Ribeiro, no qual a famosa lhe perguntava sobre fotos de família expostas no interior da casa, localizada na Linha 21 de Abril.
— Ela (Maria) ficou me perguntando e eu fui falando, nem vi que estava gravando — conta a moradora.
Durante as gravações, Dona Carolina viu a entrada de sua residência se transformar num camarim. Outro cômodo foi utilizado para uma cena importante, mas dessa ninguém pode falar. Morando sozinha, Dona Carolina acompanhou in loco os dias de gravação em seu lar. Nos momentos em que o tradicional frio serrano dava as caras, ela tentava ajudar como podia:
— Sempre gostei de receber as pessoas. Desta vez, fiquei famosa no chá de maçã. Tinha um pessoal da Paraíba na equipe, eles passavam muito frio. Me dava um dó que nossa. O chá era o mínimo que podia fazer.
A residência ganhou pintura nova em toda parte externa por conta das gravações, mudança que a moradora resolveu manter, até para não esquecer tão rápido de um dos momentos mais especiais que viveu nos últimos anos.
— Para mim, foi uma experiência nunca sonhada na vida — diz Carolina, sobre ver sua casa se transformar em set de filmagem.
Film commission viabilizou filmagens em Antônio Prado
Casas como as da família de Carolina Susin Beltrame de Rafael Zambianco Grazziotin foram alugadas pela equipe da Globo, ou seja, renderam lucro a seus proprietários. Esse era justamente um dos objetivos de Fábio Lopes, secretário de Turismo e Comércio de Antônio Prado, ao criar uma film commission na cidade.
— Era o principal desafio. Temos toda uma história de tombamento na cidade, mas parte da comunidade nunca aceitou isso. Eu não conseguia rentabilizar isso para a comunidade, percebi que esse era um dos fatores motivacionais, porque as pessoas entendiam que tinham tido um prejuízo econômico com o tombamento. Tentei achar forma de rentabilizar e uma das saídas veio com a film commission — explica o secretário.
Além de proporcionar lucro a partir da locação de prédios tombados, a vinda da série também movimentou economicamente outros setores de Antônio Prado: rede hoteleira ficou praticamente lotada, bares e restaurantes ganharam muitos clientes, veículos foram alugados, figuração foi remunerada contando com participação de moradores, e vários prestadores de serviço do município foram contratados.
A ideia da film commission surgiu há cerca de um ano, mas a vinda das gravações da série Desalma inaugurou o trabalho de fato. Agora, o secretário está empenhado em trabalhar diretamente com a comunidade, para que haja ainda mais receptividade nos projetos que virão _ para este ano, já está prevista a gravação do comercial de Natal de uma rede nacional de lojas usando Antônio Prado como cenário.
— Estou conversando com alunos nas escolas. Às vezes, você não consegue colocar a ideia diretamente para as pessoas, mas falando com as crianças e e jovens, elas chegam em casa e repassam. É preciso fazer esse trabalho, preparar a comunidade. Essa cidade é o ouro do futuro, é o novo boom do turismo — defende Lopes.
Prevendo que Desalma será um sucesso, a secretaria de Turismo e Comércio já planeja a criação de um roteiro ao estilo "Caminhos da Desalma", para levar turistas em cenários utilizados pela produção.
— Vamos aproveitar este legado deixado pela série. Também estamos em conversa para voltarem numa próxima temporada — planeja o secretário.
Interagindo com a cidade
Mesmo quando as filmagens não estão rolando, a cidade continua a absorver a presença dos "forasteiros". Em Antônio Prado, cerca de 200 pessoas da equipe de produção da série Desalma foram incorporadas na rotina do pequeno município com pouco mais de 12 mil habitantes. No Hotel Pradense, que fica no Centro Histórico da cidade, o sotaque carioca tomou conta dos corredores e áreas de convivência durante o mês de junho.
— Ovoxxx molexxx — brincou o atendente Radamés Donida, 46 anos, forçando o "carioquês" para contar à reportagem qual era o prato mais pedido durante os cafés da manhã dos integrantes da equipe.
— Eles gostaram muito da comida... massa, polenta e salame comeram muito. Consumiram bastante vinho também, e só do nosso porque vendo só rótulos de vinícolas de Antônio Prado, sou bairrista — complementou Hermes Fochesato, proprietário do hotel.
O Pradense hospedou grande parte da equipe técnica da produção (elenco e o diretor Carlos Manga Jr. ficaram em Flores da Cunha), deixando alguns dos clientes tradicionais do hotel sem vaga. Fochesato comemora não só o incremento nos negócios, como também a visibilidade que a vinda da produção pode dar a Antônio Prado.
— Quando veio O Quatrilho para cá, o turismo despertou. E quando foi para o Oscar, aí explodiu. Nossa esperança é repetir isso, acho que a série vai trazer muitas pessoas para cá — comemorou o empresário.
Outro lugar bastante frequentado pela produção da série em Antônio Prado foi a loja na qual Roberta Verza, 36, trabalha. Conhecido historicamente como Shopping do Perosão (em referência ao antigo dono), o lugar existe há 60 anos e, atualmente, vende itens como tecidos, artefatos de decoração, utensílios de cozinha, roupas, acessórios e muito mais. O estilo vintage raiz do lugar chamou atenção do pessoal da cenografia da série, que passava por lá sempre em busca de peças que pudessem acrescentar em cena.
— Alugaram panela de ferro, chapéu de palha, pente de plástico, penico (risos). Até minhas plaquinhas de preço escrito a mão no papelão eles acharam legais e levaram para usar — disse Roberta, que ficou bem animada com a movimentação diferente: — Eu achei o máximo, por mim, eles podiam ficar aqui para sempre.
Animadas também estavam as atendentes de uma loja de produtos naturais localizada bem ao lado da praça central da cidade. É que elas ganharam clientes ilustres nesse período.
— A Cassia Kis veio mais seguido, ela era mais dos produtos veganos, pão sem glúten, leite de côco. Também veio a Maria Ribeiro e a Cláudia (Abreu) veio por último, foi super atenciosa, bateu foto — relatou a atendente Talita Renosto, 21.
Ela e a colega não costumam ver muita movimentação por lá, mas as gravações de Desalma mudaram por completo a paisagem da cidade durante o último mês.
— A gente vê as coisas prontas na tevê, não imagina tudo que envolve. Só ficávamos vendo eles passarem aqui na frente cheios de câmeras — comentou Juliana Madalosso, 41.
Enfrentado o frio serrano
Se em Antônio Prado a equipe da Globo pegou uma espécie de veranico de junho, em São Francisco de Paula a situação tem sido diferente. Cerca de 150 pessoas (incluindo elenco principal e direção) estão por lá desde o dia 1º de julho, enfrentando as temperaturas mais baixas do ano.
— A gente vê que a roupa deles não é preparada para o frio, por mais que coloquem botas, luvas. Mas acho que eles estão usando isso, porque na Ucrânia (país que a série referencia em seu roteiro) é bem frio também — sugeriu João Tedesco, caxiense que comanda ao lado do irmão, Elton, o Tedesco Eco Park, localizado no interior de São Chico.
No parque, aberto ao público há seis meses, estão sendo gravadas cerca de 50% das cenas externas de Desalma. O frio ajuda em algumas dessas sequências, mas impede outras.
— Eles já gravaram em vários pontos, no bosque, ao redor do lago, perto da cachoeira. Estão registrando cenas noturnas também, hoje (na sexta) vão gravar até duas da manhã. Já a cena de entrar na água não poderá ser gravada aqui, é muito frio (risos). Acho que farão no Rio — deduziu João.
O Tedesco Eco Park possui 100 hectares com uma paisagem rodeada por pinus, o que lembra o leste europeu. O espaço oferece hospedagem, área de camping e um hostel, que está sendo usado para abrigar camarins e acolher parte da equipe operacional. As cabanas disponíveis para hospedagem são tendas individuais que lembram um safari africano de luxo. É lá que o diretor Carlos Manga Jr., a autora Ana Paula Maia e a protagonista Cassia Kis Magro estão instalados, curtindo a paisagem serrana de São Chico 100% do tempo.
Sabendo da vinda da equipe da Globo, a direção do Tedesco Eco Park antecipou um investimento de R$ 400 mil em melhorias que seriam feitas no próximo ano. A contrapartida não virá somente quando Desalma for lançada e as paisagens do parque ganharem milhões de espectadores. Conforme João Tedesco, o retorno já está sendo sentido:
— Quando começamos, os clientes nos mostravam o que era mais legal do lugar e o que deveríamos mudar. Agora, isso tem acontecido com o pessoal da Globo. Eles têm uma visão muito apurada, estão dando um up muito grande.
:: A SÉRIE
Sites e blogs especializados no universo da televisão já estão divulgando informações prévias sobre Desalma. A série deve ter lançamento pela Globoplay (plataforma de streaming criada para competir diretamente com a Netflix), a partir de 2020. A direção é de Carlos Manga Jr. e a história é escrita por Ana Paula Maia, autora premiada que assina obras como Enterre Seus Mortos e Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos.
Protagonizada por Cláudia Abreu, Cassia Kis Magro e Maria Ribeiro, a trama de mistério faz relação com famílias da Ucrânia e deve ser gravada também no Paraná.
:: OUTRA PRODUÇÕES GRAVADAS NA SERRA
Longa O Quatrilho (1995).
Série O Quinto dos Infernos (2002).
Série Decamerão - A Comédia Do Sexo (2008).
Longa Morro do Céu (2009).
Longa Os Famosos e os Duendes da Morte (2010).
Novela Além do Tempo (2015).
Longa Real Beleza (2015).
Longa Prova de Coragem (2016).
Longa Os Senhores da Guerra (2016).
Longa O Filme da Minha Vida (2017).
Longa A Cabeça de Gumercindo Saraiva (2018).
Longa Os Dragões (em produção).