Não é preciso invocar sociólogos, filósofos, nem astrólogos para traçar um perfil da vida do caxiense. Geralmente, as pessoas saem de suas casas, vão ao trabalho, de lá seguem para o supermercado e então regressam ao lar. No máximo, o desvio dessa rota tem duas outras opções, a gastronômica ou a visitinha ao shopping.
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Transgressão, nessa Caxias pragmática, é desviar a rota casa-trabalho-supermercado-casa e incluir, pelo menos, uma atração cultural na agenda. Alguém aí do setor de pesquisa e estatística da prefeitura poderia nos dizer qual é o percentual de caxienses que frequenta atividades culturais? Talvez melhor nem tocar no assunto, né? E por que isso ocorre?
Na noite de terça-feira um debate no Campus 8, da UCS, abriu diversas linhas de investigação da cena cultural de Caxias, que já colheu em outras épocas safras de Capital da Cultura, Filtro Cultural e Encaixotamento do Amarp, só para recordar do passado recente da Pérola das Colônias. O estopim para o debate da semana ficou por conta da detenção do Lucas Leite, educador, artista plástico e aluno do curso de licenciatura em Artes, da UCS.
Lucas e sua esposa, Júlia Pellizzari fazem parte do coletivo Elichat, que é a menina-gatinha-fofinha que estampa sua doçura pelas ruas de Caxias. Lucas foi detido no dia 16 de maio, sob a alegação de infringir o artigo 65 da Lei Ambiental 9605/98.
— Minha referência é o Profeta Gentileza — revela Lucas Leite, esticando a camiseta com o grafismo do Gentileza (1917-1996), um senhor que andava pelo Rio de Janeiro distribuindo gestos de ternura.
Lucas não se vê vinculado ao movimento do grafite.
— Entendo meu trabalho como uma performance artística e não como grafite, porque não escondo as tintas, nem faço na calada da noite. Eu faço durante o dia para legitimar o trabalho de todos os artista de rua — defende.
O movimento de pintura de rua, ou como melhor define Stang, um dos principais nomes dessa turma sem lei nem documento, a "expressão de rua", é a voz do grafite que se diz autêntica porque manifesta as dicotomias e idiossincrasias dessa cidade que ainda não tolera as diferenças sociais. Mesmo sem entender que está vinculado ao grafite, Lucas pinta na rua, mesmo ambiente da galera do Stang.
— Nossa plataforma é a rua, e isso choca muita gente ainda. Passa todo mundo na rua, do empresário ao pichador. É difícil ser aceito, ainda mais que Caxias é de uma sociedade antiga e retrógrada — argumenta Stang.
Feita as ressalvas de estética e de linguagem, o discurso é uníssono:
— Há uma onda dessa administração atual de criminalizar as ações artísticas. E por que isso está acontecendo na cidade? — questiona Lucas.
Stang vai mais além na sua observação dessa realidade:
— É bizarro como somos abordados. Uma vez me pegaram e nem fui levado pra delegacia. Me levaram pra um lugar só pra me bater. Amigos meu já apanharam feio, e tiveram de ir pro hospital, simplesmente porque estavam com uma lata de spray na mão.
Há os que esbravejam contra a pichação, porque só vê rabiscos de agressividade, assim como há quem veja com tristeza quem ignora a mensagem de crítica social que há por detrás desses traços de difícil leitura.
— Uma lata de spray que não oferece perigo a ninguém, mas levanta questões que incomodam muito mais. Nossa lata é inofensiva, mas ao mesmo tempo tem um poder muito grande — dispara Stang.
Crítica social e ocupação dos espaços
A cidade é uma tela à céu aberto. Mas ainda há um muro que divide as pessoas. Por causa da detenção de um dos alunos da UCS, foi possível reunir artistas, pesquisadores, professores, acadêmicos, políticos, produtores culturais, pichadores e grafiteiros, para que se chegasse à conclusão de que há uma pauta ainda mais abrangente que apareceu diante dessa cena fatídica. Seja através da pintura, das intervenções de várias linguagens, de um rolê de bike, ou simplesmente pra reunir uma galera na praça e tocar um violão ou ativar um slam poético, parece que a cidade não é tão receptiva a essas ações mais livres.
— A propriedade é mais valiosa do que a vida, é maior do que todos nós. É dessa forma que o direito se materializa — critica o advogado Alex Caldas.
O senso crítico dessa galera que pinta na rua é aguçado:
— Se quisermos mudança temos de estar na rua ocupando a cidade — defende Lucas Leite.
No entanto, eles também têm bom senso:
— Se um cara entrar na igreja de São Pelegrino e pichar as obras do Aldo Locatelli aí sim teria discussão. Mas o cara estava em um espaço público e fez um desenho no chão, aí é um absurdo terem punido. Então na época de Copa do Mundo vai ter de prender um monte de gente que pinta as calçadas de verde e amarelo. Porque é isso que ocorre no Brasil todo —provoca Alex.
Uma provocação emenda em outra, dessa vez do jornalista Carlinhos Santos:
— Qual é o lugar da arte nesta cidade?
Seja vista como expressão e crítica social, seja manifesta em tintas com estética e conceito artístico, Carlinhos defende:
— Lugar de grafite é na rua.
Carlinhos complementa seu pensamento com um devaneio no tempo e no espaço:
— Quando cheguei à Caxias, o Núcleo de Artes Visuais de Caxias do Sul estava recusando fazer os painéis da Festa da Uva e convidou grafiteiros para pintar em seu lugar. Passam-se 15 anos e o que vemos? Uma política de cerceamento da arte e de convívio nas ruas.