Cabelos grisalhos, óculos pendurados no pescoço e olhar sereno de quem pressente o tom nostálgico da conversa. Nery Rodrigues de Atayde recebe a reportagem em frente à porta envidraçada da San Remo. Aos 65 anos, ele comanda uma das poucas videolocadoras caxienses que sobreviveram à era dos filmes baixados na internet e das plataformas de streaming.
É manhã de quarta-feira. No interior do estabelecimento, desde 2016 no bairro Pio X, nenhum cliente. Apenas Nery, que se reveza no balcão com a cunhada e ainda trabalha como motorista de aplicativo para complementar a renda. Um cenário bem diferente se comparado com alguns anos atrás, quando as locadoras ficavam lotadas — sobretudo nos finais de semana.
— Os clientes antigos ainda procuram a San Remo pelo acervo de clássicos, mas é uma coisa que virou hobby. Tenho pena de me desfazer do acervo. O pessoal até me incentiva a continuar, mas não corresponde muito (risos).
Atayde atribui ao período 2005-2010 o auge da locação de filmes. Na época, o estabelecimento alugava de 500 a 600 títulos semanalmente. Hoje, a movimentação de um mês inteiro não alcança esse número.
— É uma paixão, por isso pretendo continuar — afirma convicto.
Caxias do Sul, que chegou a ter 143 estabelecimentos registrados como videolocadoras, segundo levantamento realizado junto à prefeitura, atualmente pode contar nos dedos as sobreviventes. Como muitos empresários do ramo não deram baixa na Junta Comercial após encerrarem as atividades, não é possível ter o número exato de quantas resistiram.
Uma das sobreviventes é a Star Flash, que funciona junto a um posto de combustíveis no bairro Charqueadas desde novembro de 2005. Sem ajuda de funcionários, o estabelecimento é tocado pelo casal Paulo Roberto da Silva e Katia Eliza Flesch. No acervo, que conta com quase 10 mil títulos, os filmes que recém saíram dos cinemas são os que mais atraem a clientela. O movimento, contudo, sofreu um baque nos últimos anos — principalmente a partir de 2014, com a popularização da plataforma Netflix no Brasil.
— Chegamos a locar mais de 200 filmes somente nas sextas e sábados. Hoje, esse é o movimento da semana inteira. Como absorvemos clientes das locadoras que fecharam, ainda temos um movimento razoável, mas não sei como será o futuro — pondera Katia, sem esconder a saudade pelos tempos em que "as noites eram movimentadas por aqui".
A terceira videolocadora encontrada pela reportagem está no outro lado da cidade. Mais precisamente no bairro Cruzeiro. Nelson Acioly Vieira Filho, não por acaso conhecido pela vizinhança como "Nelson da Locadora", atua no ramo desde maio de 2006. O comerciante, que há cinco anos chegava a locar 2,1 mil filmes por mês, viu a procura cair mais da metade:
— Agora não passa de 900 filmes (locados no mês). Eu fico triste, principalmente pelas locadoras que não resistiram e fecharam as portas. Somente aqui no Cruzeiro, eram sete ou oito. Agora só tem a minha — constata.
Seja pela fidelização de clientes, pela recente diversificação dos serviços oferecidos ou pela nostalgia de revirar as prateleiras em busca do que há de melhor na sétima arte, o fato é que algumas videolocadoras resistem. Ao download, ao streaming e ao próprio tempo. Histórias que, embora já estejam na memória afetiva dos cinéfilos de plantão, ainda respiram em alguns pontos de Caxias do Sul.
Clientela fiel
É indiscutível. Um dos pilares que mantém de portas abertas as poucas videolocadoras sobreviventes é a relação de proximidade com a clientela. Afinal de contas, a profusão dos serviços de streaming e a popularização do download por torrent fez despencar o número de pessoas que saem de casa para vasculhar prateleiras em busca de entretenimento para o fim de semana.
Nesse quesito, cada estabelecimento adota suas estratégias. Enquanto a ABC mantém um grupo de WhatsApp para informar sobre lançamentos e fazer reserva de títulos, a Star Flash agregou clientes de antigos concorrentes que encerraram suas atividades. É o caso do representante comercial Teobaldo Goldbeck Neto, 52 anos, que mantém o hábito de locar filmes desde os tempos do VHS e acabou migrando após o fechamento da Vídeo Clip.
— Quem vive trabalhando, correndo pra lá e pra cá, não tem tempo pra baixar na internet. Então eu passo na locadora e escolho o que quero assistir. Para mim, é muito mais prático do que utilizar as tecnologias de hoje.
Já para a auxiliar de produção Cleonice Pereira dos Santos, 34, o diferencial das videolocadoras é a oferta de lançamentos.
— Tem dias que a gente fica procurando um filme na Netflix e não encontra. Por isso que eu ainda vou em locadora. Tem muito mais opões, além de poder ficar com o filme em casa por alguns dias e assistir mais vezes.
No caso da San Remo, como já era de se imaginar, o trunfo está no vasto acervo de clássicos. Nas prateleiras, os lançamentos dividem espaço com obras de mestres do cinema nacional, como Glauber Rocha e Fernando Meirelles, e de outros países, num catálogo que vai do italiano Federico Fellini ao japonês Akira Kurosawa. Ao todo, são 10 mil títulos à disposição dos fregueses.
— Tem muito professor e estudante da UCS que busca esse acervo diferenciado. São filmes que o pessoal não consegue achar na internet e eu tenho por aqui. Isso me ajuda bastante — comemora Nery Atayde.
Diversificação de serviços
Com a queda acentuada nas locações, as videolocadoras caxienses que se mantém na ativa precisaram recorrer à diversificação de serviços para sobreviver. É o caso dos três estabelecimentos visitados pela reportagem.
A tradicional San Remo, que em 2010 agregou um espaço para venda de calçados e acessórios femininos, faz agora um novo reposicionamento de mercado. Entram em cena os produtos de limpeza de marcas especializadas, estratégia para atrair novos clientes.
— Não me dei bem com os calçados. Quero ver se com os produtos de limpeza consigo alavancar a renda e manter a locadora — admite Nery.
O cenário não é diferente no bairro Charqueadas. Além da locação de filmes, a Star Flash passou a comercializar bonecos colecionáveis de filmes e games, jogos eletrônicos e acessórios para computador e celular. O espaço também mantém uma lan house, com serviço de impressão e acesso à internet com preços populares.
No caso da ABC, os serviços alternativos — como xerox, recarga de celular e acessórios para smartphones — já representam 20% da receita. E Nelson Acioly quer diversificar ainda mais: em breve oferecerá manutenção de celulares.
— Quanto mais alternativas, melhor. Me mudei para uma sala com aluguel mais barato e agora vou consertar celulares. Eu e meu filho fizemos curso para oferecer esse serviço. É o que podemos fazer.
Streaming: amor e ódio
Somente em 2018, a Netflix registrou 29 milhões de novos assinantes ao redor do globo. Mesmo com a expansão acelerada e o recente reconhecimento de suas produções em cerimônias como o Oscar (Roma, de Alfonso Cuáron, é o caso mais simbólico), a maior plataforma de filmes e séries via streaming não é unanimidade. Principalmente entre os empresários que têm na locação de DVDs o seu ganha-pão.
— Me recuso a assistir (Netflix). Eu considero uma concorrência desleal. Ao passo que grandes estúdios, como Fox e Warner, vendem seus conteúdos, eles mantém como exclusividade para os assinantes. Isso é uma forma de monopólio e por isso sou contra — argumenta Katia Flesch, de maneira enfática.
O proprietário da ABC Locadora mantém a mesma linha de raciocínio. Para Nelson Acioly Vieira Filho, as plataformas de filmes pela internet transmitem a falsa sensação de gratuidade, além de pecarem na disponibilização de lançamentos:
— Muitas pessoas acham que, na internet, estão vendo filme de graça, mas não é bem assim. A Netflix pode ter mensalidade barata, mas você precisa ter acesso à internet de qualidade. Além de ser uma conta fixa, o que não acontece com as locadoras, onde você só paga quando aluga.
Já o veterano Atayde, da San Remo, reconhece nas plataformas de streaming os sinais dos novos tempos. No entanto, o empresário, que diz ter virado cinéfilo pelo ofício, não abre mão dos velhos hábitos:
— A minha filha tem assinatura de Netflix, mas eu continuo assistindo filmes no meu aparelhinho — brinca Nery, sem esconder o tom de nostalgia.