Os pragmáticos enxergam a escola apenas como um ambiente que ensina a tabuada e as regras gramaticais. Felizmente, há cabeças pensantes que ainda lutam para que projetos educacionais possam abrir o entendimento, a fruição estética e conduzir crianças e adolescentes para o que há de mais essencial nessa vida: fazer perguntas.
Na tarde de quinta-feira, dia 23 de maio, 36 adolescentes atendidos pela Associação Criança Feliz visitaram a exposição Natureza-morta em diálogo, com obras da Pinacoteca Jose Antonio e Hieldis Martins, na Galeria Municipal da Casa da Cultura, em Caxias. A mostra segue até o dia 31 de maio, com visitações de segunda a sexta, das 8h às 18h e, sábados, das 10h às 16h.
Poderia ter sido só mais uma visita protocolar. Uma mirada rápida, um giro para ver as pinturas, entrar no ônibus e de volta aos conteúdos curriculares em sala de aula. Mas a cena de quinta-feira era pura emoção e bravura. Educadores da Associação Criança Feliz não apenas conduziram os pré-adolescentes e adolescentes para a Galeria Municipal, bem como orientaram os alunos para uma atividade de pesquisa e experimentação do fazer artístico.
A tarefa era observar a mostra, relatar em um formulário quais obras mais gostaram, em seguida, escrever um breve relato descritivo da pintura escolhida, explicar qual a sensação ao vê-las, e por fim, esboçar um rascunho de uma releitura da cena escolhida.
E pensar que há escolas, até da rede particular que tem desperdiçado este tempo, desprezando a fruição e ativação da sensibilidade dessa gurizada, justamente porque dá trabalho estimular o pensamento. Enfim, só um desabafo. A colecionadora Hieldis Martins estava realizada ao ver esses meninos e meninas da Criança Feliz a desvendar cada minuciosidade das obras de artistas como Carlos Scliar e Cícero Dias, só para citar dois expoentes.
— Eu quero dar os parabéns a vocês, porque estão tão compenetrados, concentrados e comportados. Estou realmente muito emocionada com vocês aqui — revelou Hieldis, após receber um mimo dos alunos.
Diante de uma pintura como a de Carlos Scliar, em que nada fica assim muito claro, porque não se trata de uma obra figurativa por essência, eles discutiam para dizer o que viam. Mas é lindo de se ver como eles parecem querem entrar dentro da tela. "É só um jarro", pode dizer alguém. Mas a delícia da fruição da arte é o olhar de cada um sobre suas perspectivas.
Outra obra que chama muito a atenção da gurizada é a Mesa do Mar e Terra e Martinho de Haro ao Fundo que tão Bem Pintou a sua Cidade com Direito a uma Receita Gastronômica de Zeca D'Acampora, do pintor Juarez Machado. Sim, esse é mesmo o nome da obra, e seus traços flertam com o cubismo e por ser pintada a partir de uma perspectiva oblíqua logo cativam os olhares curiosos e irrequietos desses meninos e meninas da Zona Norte de Caxias.
A Associação Criança Feliz atende 230 crianças, dos seis aos 15 anos, em vulnerabilidade social, no turno inverso ao da escola, no bairro Fátima Baixo.
— Tenho muito orgulho em fazer parte deste trabalho, e proporcionar a eles a socialização através da sensibilização da arte. Nossas atividades sempre buscam trabalhar a literatura através da leitura e da produção textual, e também de outras artes. De que outra forma eles teriam acesso a essa atividade aqui hoje? — questiona, Camila Demoliner Henz, gerente do associação, sem esconder o brilho no olhar de satisfação por ver a gurizada envolvida e muito curiosa com cada uma das obras.
Nem sempre é fácil explicar porque preterimos uma das pinturas em detrimento de outra. Por vezes somos levados a escolha porque nosso repertório diz que é certo preferir o artista X, afinal de contas, há tanto dito e propagado dele por aí. Mas quem é Cícero Dias para uma menina ou menino da Zona Norte?
— Eu escolhi para fazer a releitura uma pintura do Cícero Dias. Gostei dela porque tem dois rostos — diz Maria Eduarda Neres, 14 anos, do 9º ano da escola João De Zorzi, sem tirar o olhar da obra.
— Mas o que há de tão interessante? — pergunto.
— A forma como elas olham... Mas eu acho que vou mudar um pouco as cores — sintetiza Maria Eduarda.
É difícil até de explicar, mas parece que a pintura ativou algo em Maria. Ela ama desenhar e amava antes de conhecer a obra do Cícero. Mas sabe quando há momentos na vida que são determinantes para nossas futuras escolhas? Sem abusar do tom profético, era como se Maria estivesse a rascunhar um futura obra que em breve vai figurar em galeria de arte.
Há poucas vagas
Escolas que desejam fazer a visita devem ligar para (54) 3215.4307
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