Descer as escadas para o sub-solo do Centro Cultural Moinho da Cascata, em Caxias, é como acessar o baú de memórias afetivas. De cara, uma boneca e livros do Monteiro Lobato nos dão as boas-vindas da mostra coletiva Dona Emília de trapo de macela, promovida pelo Instituto de Leitura Quindin, com curadoria do artista plástico Rafael Dambros.
Caminhar entre as obras é como sentir o aroma da infância. Nosso olhar é tomado pela curiosidade, seja pela imagem poética da instalação de Matheus Montanari, que tem o poder de acolher o nosso olhar e nos levar para dentro da obra; seja pelas dezenas de olhares e seus mil significados (entre afetos e desafetos), das fotografias de Ilka Filippini.
Ou ainda na provocação de quem realmente somos e do que estamos a fazer, quando tapamos o olhar como se tolir fosse parte da boa regra de conduta, na pintura de Marina Rombaldi. Além do discurso da imagem, há impresso na obra um sub-texto que nos faz refletir: "Os pensamentos, temos de arrancá-los como se arrancam árvores. Para que tantos se um faz o mesmo efeito?". É duro, parece tão maduro, mas ao mesmo tempo é discurso que nasce na infância.
Interessante como há simbiose e interlocução das propostas e recortes a partir da menina Emília. Porque de um lado há retratos de crianças que ora sorriem, ora parecem apáticas nesse mundo. Ao mesmo tempo, o discurso que ceifa a natureza provocadora e curiosa da infância é retratada em fotografias desfragmentadas em pequenos cubos pelo chão.
Mas basta levantar um pouco o olhar, em sinal de esperança (talvez?) para mais uma vez nos deparamos com as bonecas de pano, como se estivéssemos a recuperar o néctar de docilidade mirim. Esta perspectiva de Sharisy Pezzi escancara o olhar áspero desses bonecos, sintoma da falta do afeto. Da mesma forma, as pinturas em preto e branco parecem revelar a frieza das relações.
"Sou independência ou morte?", nos provoca Marina Prochászka, cuja obra impressa em banners, e até no uso do suporte destila a crítica de uma vida plastificada. Assim como as fotografias desmembradas e coladas em pequenos cubos, da Ilka, a Marina P., em suas obras revela quanto de nós (desde a infância) tem sido desconstituído, ou desconfigurado (para usar um termo pós-moderno).
E tudo isso, como uma onírica viagem para dentro de nós mesmos, da infância que tivemos ao choque com essa "vida de verdade" que é crescer. E ali, dentro do baú, a Emília que entregou sua vida a mais de uma geração que teimava sonhar em ser - no futuro - feliz, enquanto brincava.
Não sei dizer onde, se não ali no Moinho da Cascata, essa mostra coletiva teria melhor lugar para estar. Parece-me um portal ideal, como se estivéssemos a descer rio abaixo (inclusive no som da cascata) a nos lançar pra dentro do poema Retrato do Poeta Quando Jovem, do escritor portugês José Saramago:
"Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas"
E pra encerrar, cabe ainda uma última provocação, dentre tantas que as obras suscitam: "Ou basta tratarmos com humanidade que a loucura vai embora".