Ao combinar atender a reportagem na última terça-feira, Dom Lucio Yanel alertou que não poderia estar acompanhado do fiel e inseparável amigo, o violão. Contudo, amenizou:
— Sem falsa modéstia, meu rosto é mais conhecido do que o violão.
O alerta revelou-se mera pegadinha tão logo o argentino radicado em Caxias do Sul, com seu inconfundível bigode, alpargatas e camisa aberta na altura do peito, despontou caminhando pela praça Dante Alighieri, carregando o instrumento na mão direita, para depois atravessar a rua e chegar à Casa da Cultura. O local marcado para entrevista é onde Yanel irá apresentar, amanhã à noite, o inédito show Universo Pampa.
Responsável por revolucionar a forma de tocar violão no Rio Grande do Sul e conduzir o instrumento ao centro do palco, para ladear com o acordeom, Yanel irá compartilhar um tanto da bagagem acumulada ao longo de seis décadas devotadas a conhecer a música e a formação sócio-política do pampa, bioma presente nos territórios da Argentina, Uruguai e em 62% do território do Rio Grande do Sul. Mais do que uma vasta extensão de terra plana encerrada por coxilhas e montanhas, o pampa, segundo o violonista e compositor, carrega um forte viés identitário.
— Quero instigar o público a se localizar dentro do seu próprio "eu". De sentir que são pessoas com uma identidade própria, pois cada pedacinho da América do Sul é o epicentro de indivíduos diferentes, que têm a mãe terra como motor para gerá-los. Gosto de dizer que, quando viajo pela Europa, vejo homens caminhando com seus cachorros pela coleira. Aqui, nós caminhamos com nossas crianças, filhos e netos. Isso nos torna seres tão especiais — poetiza.
Ao desfilar um repertório de milongas, cielitos, tristes e outros ritmos da herança pampeana, Yanel quer mostrar as aproximações e distanciamentos entre as diferentes formas de se expressar à guitarra, que muito têm a ver com as sutilezas da formação étnica de cada região.
— Uma vez perguntei a Atahualpa Yupanqui quantas formas de milongas existem. O mestre respondeu: "as milongas existem de acordo com a mão do 'guitarreiro'. E suas mãos expressam o seu sentimento, que por sua vez expressa de onde ele vem". Entender essa diferença é compreender, por exemplo, que as milongas argentinas e uruguaias são cabisbaixas, sérias, de quem tem a luta pela liberdade continuamente presente em sua forma de olhar a vida. Já o pampeano brasileiro, por ter uma miscigenação muito forte com o português e com o africano, assume uma forma de manifestação mais movimentada, menos introspectiva — explica.
Aos 72 anos e com os dedos e o cérebro igualmente ágeis como os de um menino, Lucio Yanel demonstra a cada fala um conhecimento sólido, de quem aprendeu com a própria vida sem deixar de estudar nos livros. A noite de amanhã, no Teatro Pedro Parenti, será uma aula e um privilégio para algumas centenas de fãs.
Também com temática pampeana, o hall de entrada do teatro Pedro Parenti terá obras do artista plástico Vasco Machado.
Luta pessoal
Em janeiro, viralizou no Facebook uma foto em que Yanel aparece tocando violão para a esposa, Sueli, que há 11 anos padece de mal de Alzheimer. Foram mais de 60 mil compartilhamentos que fizeram o Brasil e o mundo saber do drama vivido pela família, em especial pelo músico e seu filho, o estudante de Jornalismo Pedro Giles, 24. Dois meses depois, o músico diz não ter imaginado que aquele pequeno recorte da rotina familiar ganharia tamanha proporção.
— Pedro tirou a fotografia e postou, pedindo para que eu não ficasse bravo. Nunca foi meu interesse contar minha penúria, mas sabe como eu lido com isso? Como uma vontade de reclamar de tudo o que falta para quem sofre dessa maldição. Queria que alguém desse bola para isso, no sentido de fundar uma associação de amigos ou algo assim. É preciso ter em quem se apoiar. Existe uma mobilização muito importante em torno do câncer de mama, do câncer de próstata...por que não se sensibilizar também para o mal de Alzheimer? — questiona.
As serenatas para Sueli são diárias. Embora a esposa não consiga mais falar ou manifestar reações, Yanel acredita que ela goste de ouvir suas melodias e, como ele mesmo diz, "macaquices" ao violão.
— Embora ela não manifeste nada, sinto que ela está me entendendo. Sabe por que? Porque quando a transportamos de novo para a cama, ela fica me olhando por muito tempo, como se dissesse "muito obrigado".
Programe-se
O quê: show Universo Pampa, de Lucio Yanel
Quando: quinta-feira, às 20h30min
Onde: Teatro Pedro Parenti (Casa da Cultura), em Caxias do Sul
Quanto: R$ 30 e R$ 15 (meia entrada)
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