A vida é feita de escolhas. E nem sempre conseguimos ponderar, rever, reconsiderar, porque somos tragados pelo tempo, ou ainda, pelo que o tempo fez de nós. Essa e outras provocações existencialistas fazem parte do arsenal do espetáculo Entrelinhas, encenado no último final de semana, com duas sessões lotadas, na Tem Gente Teatrando, em Caxias do Sul. A peça faz parte do projeto Teatro para Todos, em sua quarta edição. Em maio, dias 4 e 5, o projeto terá a encenação de Tango, com direção de Ana Woolf e no elenco, Roberto Ribeiro e Tina Andrighetti.
Então, vamos à Entrelinhas. Há subtextos sobre a narrativa escrita por Priscila Weber. Separadas por linhas desenhadas no chão como se fosse um tabuleiro de jogo da velha, três gerações de mulheres da mesma família divagam entre o imponderável e a esperança. Com direção de Zica Stockmans, a peça é um presente às atrizes Priscila Weber, Maria do Horto Coelho e Maria Carolina Carvalho, que além de pontuar essa pseudo-guerra familiar, revelam-se diante do público de forma bastante realista.
Sem cerimônias, quebram a quarta parede para deixar sair o que há dentro delas - do melhor ao pior. Priscila interpreta Cecília, presa ao passado, às frustrações e a incapacidade de romper o fluxo de profunda tristeza interior que transborda e fere. Maria Carolina é Bia, filha de Cecília, cujo futuro está preso à mão de ferro da mãe, que delira com a remota possibilidade dela viver um resquício que seja da sua história. E, por fim, Maria do Horto interpreta Dona Marta, mãe de Cecília e avó de Bia, que procura estimular a neta a seguir seus sonhos, e ao mesmo tempo tem de lidar com o passado derrotista da filha.
Em suma, Cecília está presa ao passado, Bia está presa ao presente e Dona Marta está sempre preparada para voar rumo ao desconhecido futuro com ousadia, apesar da incerteza. Poder-se-ia divagar ainda na tese de que cada uma delas revela como é nosso consciente, subconsciente ou inconsciente. Mas esse assunto cabe aos doutores e pensadores da psiquê. A nós mortais, cabe a reflexão sempre pertinente: eu sou feliz?
Nem sempre estamos preparados para ouvir o que sussurra nossa voz interior, chamada pela filosofia de daimon, muitas vezes associada a voz da nossa alma, das pulsões mais introspectivas. Mas como lidar com o imponderável, com as consequências muitas vezes desastrosas de nos tornarmos naquilo que sempre odiamos. E ainda, como lidar com expectativas frustradas, como lidar com nossa imagem transfigurada refletida no espelho?
A sensatez de Dona Marta, nem sempre é afável: "Na vida temos de escolher entre sermos felizes ou infelizes". Refeitos do tapa na cara, nos damos conta de que nossa felicidade está em nossas mãos. O complicador dessa tentativa de retomar as rédeas da vida está na vitimização intrínseca a cada um de nós, e que Dona Marta também esfrega em nossa cara: "É difícil todos os dias sermos as pessoas que os outros querem que sejamos".
Uns escondem-se atrás da maternidade, como Cecília. Outros, ostentam um crachá da empresa com a função admirada por todos. Poucos, bem poucos, despem-se e, com amor e coragem, olham pra si mesmos, reavaliam a vida e decidem ser felizes. É pesado o fardo de viver debaixo da expectativa dos outros, como expôs nas entrelinhas a jovem Bia. Mas também não é fácil viver a vida com alegria, apesar das dores, como Dona Marta, que precisa lidar com a cobrança dos sem esperança, dos que teimam em viver abraçados à tristeza.
Como romper? Como ser feliz apesar da infelicidade de muitos momentos de dor e desordem do nosso passado? Dona Marta nos dá a dica, um dia por vez, com a certeza de não trairmos a nós mesmos.