Lama Tsering Everest, 65, propõe a cura da mente pelo cultivo de um ‘coração maior”. O que, na abordagem do budismo tibetano que a norte-americana, radicada no Brasil desde 1995, representa, significa ter a preocupação em trazer benefícios aos outros antes de procurar beneficiar a si mesmo. Ao cuidar do próximo com amor e compaixão, diz, a mente se torna mais livre.
O caminho budista para lidar com as emoções perturbadoras é o tema que traz Lama Tsering a Caxias do Sul, para uma palestra neste domingo, na UCS. Ainda segundo a linhagem tibetana, são perturbações provocadas pelos venenos da mente, que surgem da confusão e da ignorância. Entre os principais, (numa lista de 84 mil) o apego, a raiva e a ignorância.
– Como consequência dos venenos da mente e das dificuldades que eles produzem, nos sentimos validados em magoar e ferir os outros – aponta.
Discípula e intérprete de Chagdud Tulku Rinpoche, lama tibetano fundador do templo Chagdud Gonpa Khadro Ling, em Três Coroas, Lama Tsering coordena o templo Odsal Ling, em São Paulo. Seus ensinamentos, transmitidos com sabedoria e bom humor, são assistidos por milhares de espectadores no YouTube. A seguir, confira a entrevista que Lama Tsering concedeu ao Almanaque.
Almanaque: Diversos pensadores têm se debruçado sobre a ansiedade que caracteriza nossa era. Por que, afinal, estamos tão ansiosos?
Lama Tsering: Não acho que a reação das pessoas em relação às experiências esteja pior do que antes. Sim, temos exigências cada vez maiores, mais competitividade, medos e esperanças, e nos falta uma abordagem pessoal para lidar com nossa própria mente. Do ponto de vista budista, entendemos que a mente cria nossa experiência, e cultivamos uma compreensão de que nossa natureza é perfeita, sem falhas. Nossos mecanismos comuns fazem com que nossa percepção seja maculada pelos venenos da mente. Ficamos confusos, temos apego, raiva, e tudo isso passa a ser desafios com que temos que lidar.
Em vez de olharmos para a nossa mente em si e suas limitações, tentamos controlar os fenômenos externos. E isso não é possível. Os fenômenos externos não são facilmente administráveis.
Como budistas, aprendemos que a solução é aprender a entender nossa mente, cultivar qualidades positivas, e eliminar essas questões internas que, de outra forma, perpetuariam um sofrimento cada vez maior, com estresse e ansiedade.
Percebo que cada vez mais pessoas estão procurando filosofias e terapias orientais para acalmar a mente e o corpo. Entre elas, a meditação. Como a meditação pode ajudar no processo de lidar com as emoções perturbadoras?
A primeira coisa que precisa acontecer é entendermos melhor a nossa mente. Só assim poderemos saber que há uma qualidade do nosso ser que está além do nosso estado mental cotidiano. E essa qualidade do ser é o que Buda chamou de “natureza da mente”. A maioria de nós não tem a experiência da natureza da mente. Vivemos no meio de nossas tempestades cotidianas de esperanças e medos, e de esforços para tentar obter mais e evitar perdas. E não somos bem sucedidos.
A abordagem budista é a de curar a mente, antes de tudo, nos compreendendo melhor. E, segundo, cultivando um coração maior. E “coração” aqui significa não ficar preocupado consigo mesmo o tempo todo e se preocupar mais com os outros do que consigo mesmo. Essa é uma qualidade bastante nobre de um ser humano. Como resultado de cuidar dos demais com amor e compaixão, nossa mente se torna mais saudável e mais capaz de se adaptar. Conseguimos agir mais livremente para trazer benefício a nós mesmos e aos demais. Não é apenas a meditação que é importante. É preciso obter conhecimento e cultivar caráter, e então nos aplicar no processo de meditação.
Quando não é treinada para o autoconhecimento, a mente pode ser considerada a nossa pior inimiga?
Nossa mente é um desafio. É como se fosse alguém olhando por uma janela, olhando as coisas lá fora, e julgando o que lhe agrada e o que não, o que quer e o que não quer. Mas nossa mente é muito mais como um espelho. Porém, com todas as nossas expectativas e medos, não entendemos o que nossa mente está nos mostrando o tempo todo. Temos que aprender a olhar para nossa mente de maneira diferente. Nossa mente, no sentido mais amplo, é um campo repleto de bênçãos e qualidades. Mas quando não sabemos como usá-la, olhamos para o espelho como se fosse uma janela, e isso nos deixa confusos.
A jornada do autoconhecimento exige seguir na contramão do que prega a sociedade atual, marcada pela competitividade e pela exigência de performance cada vez maior?
Eu gosto dessa pergunta. A resposta, de maneira simples, é: não. O problema não é que sua vida seja competitiva e cheia de trabalho pesado. Não há nenhuma diferença, nos ensinamentos budistas, entre você trabalhar fora ou ser um pai ou mãe de família ou uma pessoa espiritual. A questão é “por que você faz as coisas que faz?”. Qual é sua intenção ao se dedicar a um projeto, por exemplo? A intenção mais pura é a de que, não importa o que faça, você possa trazer benefício aos seres. Seu projeto vai trazer esse tipo de benefício, ou vai trazer apenas ganhos a você mesmo, como dinheiro, poder e influência? O desafio é sempre a motivação. Se for só para si, a ação será sempre suspeita, pois trará resultados egoístas. Mas se o esforço for para o bem maior, para que todos fiquem bem e para que se sintam mais preenchidos e livres de sofrimento, então trabalhamos duro para isso. Empenhar-se em ações de grande esforço, mas livres do ego, é um processo para obter maturidade espiritual.
Todos queremos ser mais felizes. Onde buscar a felicidade? Ou, talvez, onde evitar buscá-la?
Esta é a primeira pergunta que uma pessoa espiritualizada deve fazer. E a resposta para essa pergunta é o motivo pelo qual Buda ensinou. Ele ensinou para que pudéssemos entender o que produz o sofrimento e o que produz bem estar - ou seja, o que aceitar e o que rejeitar. Se cultivamos agressão, raiva, ganância e egoísmo, iremos colher as causas e condições que mais tarde resultarão em nosso próprio sofrimento. Então, evitamos isso ao máximo. Mas isso significa que precisamos aprender o que aceitar e o que rejeitar, e o que de fato funciona. Os ensinamentos do Buda são um campo rico para começar a explorar essas questões - e uma fonte para aplicarmos nossos esforços na direção do amor, compaixão e sabedoria, e evitar aquilo que nos prejudica, que são os venenos da mente.
O budismo tibetano ensina sobre os venenos da mente, sendo o ódio, a inveja, o orgulho e o apego alguns dos principais. Como eles surgem e como podemos tratá-los?
Os venenos da mente surgem devido à confusão e ignorância. Não entendemos claramente de onde isso vem e esses venenos emergem e se proliferam. Como consequência dos venenos da mente e das dificuldades que eles produzem, nos sentimos validados em magoar e ferir os outros, por exemplo. E temos ali uma crise exponencial, com ação e reação que produzem resultados negativos cada vez maiores. Mas tudo isso é possível de ser corrigido.
Muitos mestres budistas estão usando o YouTube. Além da senhora, podemos citar Lama Padma Samten, Monja Coen. Como tem sido para a senhora se comunicar nos ambientes virtuais?
Em um mundo tão grande, é maravilhoso que possamos ter acesso aos professores e mestres que vivem distantes. Mas não quer dizer que seja suficiente. Uma relação pessoal com um mestre é uma oportunidade única e muito importante para qualquer pessoa que queira seguir um caminho espiritual. Mas poder ouvir, pesquisar, investigar para descobrir quem realmente nos toca e poderia nos guiar é maravilhoso. Mas mesmo assim, você precisa encontrar pessoalmente seu professor. Você precisa fazer o esforço para cultivar uma relação com um mestre qualificado que vai guiá-lo em sua jornada em direção à sua natureza verdadeira.
PROGRAME-SE
O quê: palestra “Emoções perturbadoras e o caminho budistas”, com Lama Tsering
Quando: Domingo, 15h30min
Onde: Auditório do Bloco H da UCS
Quanto: Inscrições a R$ 40, na hora ou pelo e-mail budismocaxias@gmail.com
Obs: a palestra será em inglês, com tradução consecutiva (realizada por um intérprete logo após cada fala).
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