A cantora Rita Lee já dizia em um trecho da música Pagu: "nem toda feiticeira é corcunda". O estereótipo da velha e reclusa bruxa má ficou no passado e as "bruxas contemporâneas" estão por toda a parte, trabalhando, estudando, buscando seus filhos na escola, enquanto resgatam a cumplicidade entre si, com base na sabedoria ancestral. Na história da humanidade elas já foram queimadas, oprimidas, mas fizeram — e fazem — a diferença nas artes, nos esportes, na ciência, garantindo também a continuidade da espécie humana.
As "bruxas" em questão são todas as mulheres que, atentas aos seus ciclos, em sintonia com a natureza, encontram o poder pessoal para ocuparem seus espaços e serem completamente livres. Em paralelo ao feminismo — movimento que luta pela igualdade entre homens e mulheres —, a filosofia do Sagrado Feminino tornou-se a grande norteadora para todas que buscam o autoconhecimento e o empoderamento, com o viés do desenvolvimento espiritual.
E foi conversando com quatro dessas mulheres-bruxas que procuramos entender do que tudo isso se trata e de que forma essa filosofia pode melhorar o mundo. Ativas no meio holístico e conectadas entre si pelo trabalho com terapias alternativas, as caxienses Natália Eilert Barella, Carolina Rodrigues, Cínthia Pretz e Paula Silveira abriram seus corações, contaram como mudaram suas vidas e de que forma estão transformando as jornadas de muitas mulheres, como facilitadoras do autoconhecimento.
Quando era adolescente, Natália se deu conta de que algo estava errado. Na faculdade de História ela encontrou algumas respostas aos seus anseios, sentindo-se especialmente atraída pelo estudo dos povos antigos e suas culturas. O meio acadêmico também abriu portas para que ela se engajasse em movimentos feministas, dos quais orgulha-se em fazer parte. Na aproximação com a natureza, ao fundar e experienciar a vida em uma ecovila, no mergulho para dentro de si mesma, foi que ela entendeu o que era a essência feminina e como era necessário buscar um equilíbrio interior que reverberasse em seu entorno.
— Ainda estamos buscando muitos sentidos e entendimentos. Vivemos em uma sociedade patriarcal, então é esta a estrutura em que a gente cresceu e as referências que a gente tem. Nós, mulheres, somos oprimidas de várias formas, a violência recai muito sobre o feminino — afirma Natália, que vive em Caxias e trabalha com terapias alternativas como aromaterapia e danças circulares.
O aprofundamento no chamado ecofeminismo, o contato com outras culturas em países como o México, a Irlanda e a Grécia, o estudo das danças circulares e a maternidade marcaram momentos importantes no que ela encara como um resgate do Sagrado Feminino. Um verdadeiro nado contra a maré da industrialização e da padronização, em busca do contato legítimo com sua própria natureza feminina.
— A sociedade acabou fazendo com que nos desconectássemos de tudo que é selvagem, de tudo que é natural. Por isso, hoje a gente modifica nossos corpos, bane os pelos, bane a menstruação, bane tudo que é visceral e acaba entrando em desequilíbrio. Existe um movimento crescente de mulheres, questionando a relação de poder na sociedade e começando a acreditar mais em si. Eu acho que esse é o grande resgate do Sagrado Feminino: a gente voltar a acreditar em quem a gente é, sem negar a nossa natureza, entendendo que essa natureza cíclica é a transformação do mundo — comenta Natália, que percebe a carência da energia feminina não apenas em relação às mulheres, mas à sociedade como um todo.
A historiadora explica que o conceito do Sagrado Feminino é ligado a todas as sociedades matrísticas, que tinham ritos em honra ao masculino e ao feminino, mantendo, assim, um equilíbrio universal. Hoje, muitos caminhos podem facilitar o resgate do que foi perdido ao longo dos séculos.
Ela aponta os círculos de mulheres como ferramentas importantes no processo de resgate desse equilíbrio, seja em uma conversa entre amigas, familiares, ou em atividades compartilhadas. De acordo com Natália, estar entre mulheres inspiradoras ajuda no resgate do próprio potencial.
— Estou longe de ser a mulher que gostaria de ser, mas estou cada vez mais próxima de mim e acho que é isso que importa. Quando a gente se aproxima de si mesma, se ama e se aceita, é uma coisa que vai para o mundo. A gente começa a aceitar e entender mais as pessoas.
De mãos dadas, em roda
O cheiro da essência de plantas medicinais, usadas na aromaterapia, misturado com a fumaça densa do purificador palo santo, costumam permear os ambientes que têm reunido cada vez mais mulheres. A batida do tambor, cânticos e rezos, meditações e partilhas colocam, em uma mesma roda, mulheres de diferentes idades, crenças, religiões e classes sociais. De mãos dadas, em um grupo, elas resgatam todas as sabedorias ancestrais que outrora foram ocultadas e tidas como pagãs, trazendo à luz meios naturais que as reconectam consigo mesmas e com o planeta.
As chamadas danças circulares sagradas foram uma das chaves que levaram Natália ao contato com seu feminino e com o universo. O resgate iniciado na metade do século 20, por meio de um bailarino europeu que pesquisava danças folclóricas, se espalhou pelo mundo e hoje conta até mesmo com festivais que chegam a reunir mais de 300 pessoas de mãos dadas. A terapeuta caxiense foi uma das responsáveis em plantar essa semente na região, após formação feita fora do país, pesquisando o resgate ancestral por meio de danças tradicionais e modernas, sempre em roda.
— É basicamente um reconhecimento do movimento do ser humano. O corpo inteiro conectado com vibração e movimento. Isso gera empoderamento e autoconhecimento — garante Natália, que desenvolve o trabalho com diferentes grupos, incluindo os círculos voltados ao Sagrado Feminino.
— É um espaço de confiança e abertura para se conectar com movimentos corporais. Dançando, fluindo no corpo, para a vida fluir — completa.
A conexão pela maternidade
O despertar de mulheres na busca pelo autoconhecimento, em muitos casos, é potencializado com a experiência da maternidade, em uma espécie de atalho que pode ser tomado para o contato profundo com a natureza feminina. A maternidade realmente não passa batida na vida de nenhuma mulher e, no caso de Natália, representou uma profunda transformação. Foi em grupo que ela encontrou apoio e amparo a anseios tão comuns entre mulheres durante a gravidez e o puerpério.
Em outro espaço da cidade, também gestante, a instrutora de Ioga, Cínthia, formava um grupo de mulheres grávidas para a prática da filosofia indiana, que tem como premissa o equilíbrio da mente e do corpo. A profissional que já havia frequentado círculos anteriormente, ao vivenciar a maternidade, entendeu o que realmente significava a conexão com o Sagrado Feminino.
— Os encontros se tornaram ainda mais importantes; é um lugar onde nos sentimos livres para desabafar e falar como nos sentimos. Entendi como é fundamental nos sentirmos inseridas e percebi como somos peças fundamentais no desenvolvimento da sociedade — comenta Cínthia, que hoje também conduz círculos femininos e trabalha com aromaterapia.
O poder que vem da natureza
Dentro da filosofia que rege o Sagrado Feminino, é possível perceber que alguns conhecimentos nunca se perderam. Principalmente quando o assunto é a medicina das ervas. Afinal de contas, quem nunca curou aquela dor de barriga com um chazinho de camomila preparado pela mãe? E a famosa babosa usada para milhares de males ou aquele limão espremido que a avó sempre recomendava? E sabedoria que transpassa gerações, principalmente por meio das mulheres (avós, mães, tias), salvou muitas vidas antes do advento da medicina convencional que conhecemos nos tempos atuais.
A chamada medicina alternativa integra o Sagrado Feminino, preservando e potencializando os saberes antigos, com tratamentos naturais voltados principalmente para a prevenção.
Cínthia aprendeu com a avó muitas das medicinas que aplica hoje em seu dia a dia. Formada em Geografia, a terapeuta holística sempre gostou de lidar com plantas, ervas e óleos essenciais, acredita na sua funcionalidade e, por isso, busca incluir o máximo de produtos naturais em sua rotina, seja como medicina ou como cosmético.
— Além de gostar muito de lidar com isso e ser melhor pro meio ambiente, também é uma forma de autonomia que encontrei, me virando com o que está disponível na natureza, sem precisar depender de medicamentos que causam efeitos colaterais ou produtos que contenham ingredientes como petróleo, por exemplo — explica.
O cuidado com o próprio corpo, com esse olhar que passa pela natureza, foi o caminho que levou Carolina a mergulhar no Sagrado Feminino. Historiadora e educadora, há cerca de quatro anos ela participou de uma roda de mulheres promovida por amigas e ficou encantada com a autonomia que poderia conquistar por meio do conhecimento acerca dos recursos que a natureza oferece, desde sempre.
— O Sagrado Feminino abrange esse resgate de sabedorias que foram ocultadas principalmente pelas religiões monoteístas. As mulheres vistas como bruxas eram mulheres normais, que tinham conhecimento das plantas, conhecimento sobre o próprio corpo, eram mulheres empoderadas e acredito que causavam medo porque tinham também essa relação com a espiritualidade — comenta.
Após frequentar e organizar círculos femininos, Carolina agora está buscando especialização em ginecologia natural, para compartilhar com outras mulheres os autocuidados que já pratica em si mesma.
— Descobrir o Sagrado Feminino foi o momento mais revolucionário da minha vida até agora porque foi quando eu entendi que poderia ter essa autonomia de escolhas, a partir desse conhecimento do feminino que estava ocultado em mim. Resolvi adentrar nisso e acho que no momento que uma mulher faz essa escolha, não tem mais volta, é um universo muito amplo, temos muito a aprender com a natureza — afirma a educadora, que também passou a ter contato com o universo dos partos naturais, conhecendo doulas e parteiras, integrantes do movimento conjunto de resgate à essência feminina.
A transformação no encontro
Foram tantas as mulheres que passaram por círculos e terapias em seu espaço, localizado no bairro Rio Branco, que Paula sequer consegue definir numericamente. Entre círculos de mulheres e terapias individuais, ela desenvolve, há seis anos, terapias e vivências voltadas ao autoconhecimento e empoderamento feminino.
Sua experiência com o Sagrado Feminino iniciou ainda dentro de casa, com as rodas de mulheres de suas família, trocando conhecimentos. Na vida adulta, encontrou espaço para desenvolver sua energia feminina dentro do movimento Guardiões da Manhã, que nasceu em Porto Alegre e tornou-se o mais consolidado do mundo, por sua disseminação e continuidade, iniciado há 25 anos.
— O movimento de Sagrado Feminino existe desde sempre, mas agora encontra uma forma mais estrutural para realizar esse resgate com mais aprofundamento — explica Paula, lembrando que em outros locais o movimento também conta com grupos voltados para homens e também para crianças.
Assim como na maioria dos círculos formados, seja pelo movimento ou de forma mais alternativa, as vivências não seguem uma determinada doutrina ou religião, voltando-se à espiritualidade de forma ampla e abrangente e trazendo os antigos saberes ao contexto da atualidade.
Com diversas ferramentas, como a mandala lunar, os conhecimentos sobre o poder das ervas, os ciclos da natureza, a inspiração em arquétipos de deusas da mitologia e mulheres que marcaram a história da humanidade, Paula promove o autoconhecimento feminino, trabalhando, sobretudo, a sexualidade da mulher, em uma linha multicultural.
— Juntas fazemos essa ponte de vida natural com o contexto atual. Estudamos como a gente pode trazer e adaptar isso à nossa realidade — destaca a terapeuta, que realiza também encontros voltados à mulheres de baixa renda, pensando em quem ainda está distante da realidade que permite acesso a essa forma de autocuidado.
— Se quisermos a liberdade e a igualdade, precisamos tomar nossa posição na sociedade. Olhar o empoderamento como algo profundo, que talvez leve muito tempo ainda, mas que certamente refletirá nas próximas gerações.
FICOU COM VONTADE DE APROFUNDAR-SE NO TEMA?
Confira alguns títulos literários relacionados ao assunto:
:: A Filha do Herói: Mito, história e amor paterno, de Maureen Murdock (Summus, 1998, 208 páginas)
:: O Legado da Deusa: Ritos de passagem para mulheres, de Mirella Faur (Alfabeto, 2016, 320 páginas)
:: Jardim Interior: Oráculo das Flores, de Denise Maria Cordeiro (Pensamento, 2007, 120 páginas)
:: Baralho Mulheres e Seus Poderes de Transformação (35 cartas)
:: O Convite, de Oriah Mountain Dreamer (Sextante, 2000)
:: O Tesouro de Lilith: Uma história sobre a sexualidade, o prazer e o ciclo menstrual, de Carla Trepat Casanovas (2016, 56 páginas)
:: A Travessia das Feiticeiras: A Jornada Iniciática de uma Mulher (Nova Era, 1995)
:: Como Nascem as Bruxas: Introdução ao Sagrado Feminino, de Ismael Cheid (Lura Editorial, 2018, 40 páginas)
:: Lua Vermelha, de Miranda Gray (Pensamento, 2017, 296 páginas)
:: Mulheres que Correm com os Lobos, de Clarissa Pinkola Estés (Rocco, 2014, 575 páginas)
:: Círculos Sagrados Para Mulheres Contemporâneas, de Mirella Faur (Pensamento, 2011, 544 páginas)
:: Manual de Introdução à Ginecologia Natural, de Pabla Pérez San Martín (2009, 370 páginas)
Mais informações sobre terapias e círculos femininos em Caxias do Sul:
:: Prisma Circular - 54 99996-1119 ou prismacircular@gmail.com
:: Casa Solar - Centro de Yoga e Consciência - 54 99155-2662 ou cinthia.pretz@gmail.com
:: Carolina Rodrigues - 54 99626-4406
:: Vitallis Espaço Terapêutico - 54 99943-0408
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