Quando a reportagem chega ao apartamento de Fernanda Montenegro, no Rio, a atriz está no 2º andar. E aparece, radiante, no alto da escada. A camisa vermelha contrasta com os cabelos brancos, marca de sua personagem na novela das 9, O Outro Lado do Paraíso, na Globo: a mística Mercedes, que mantém conexão com a espiritualidade.
Com a bela vista da Lagoa ao fundo, Fernanda comenta que passa ali, no escritório, a maior parte do tempo quando está em casa – ela grava, em média, de duas a três vezes por semana no Projac. Sobre a escrivaninha, mostra esboços de seu livro de memórias, com entrevistas que está dando à jornalista Marta Góes, a ser lançado este ano, pela Companhia das Letras. Aponta também para uma pilha de imagens que está selecionando para outro livro, de fotos e documentos de sua trajetória, projeto para o Sesc que deve sair este ano também. Por coincidência, os dois serão publicados às vésperas de seus 90 anos, que ela completa em 2019. Leia entrevista abaixo:
Pergunta: Em "O Outro Lado do Paraíso", Mercedes parece ser a única personagem pura, bondosa...
Fernanda Montenegro: Ela é uma personagem de folhetim. Acho que tanto o Josafá (Lima Duarte) quanto a Mercedes são dois personagens que só podem existir desse jeito dentro de um folhetinão. E um dos grandes acordos que tenho com a história de O Outro Lado do Paraíso é justamente aceitar o absurdo do melodrama. E acho também que, como estamos vivendo uma época muito difícil, todos nós gostaríamos, sim, de um dia sair de dentro de um caixão que está no fundo do oceano. Então, essa viagem na fantasia da sobrevivência, acho que nossa novela tem isso muito vivo.
Você contracena com antigos amigos, como Lima, Laura Cardoso e Juca de Oliveira. Como é encontrá-los em cena?
Acho que somos uma geração em extinção. O mundo mudou, a estrutura cultural teatral no país mudou, o meio de comunicação amplo é a TV, com a internet atualmente também.
Sobre essa mudança no teatro, é possível qualificá-la?
Se você começar a avaliar se é bom, se é mau, a gente fica numa gangorra. A realidade é essa: há uma ciência e tecnologia brutal vindo para cima do ser humano, e o mundo vai ter que aprender a viver nessa modalidade. Tudo hoje em dia que você fala tem uma avaliação radical para cá ou para lá. Todo mundo, de repente, sabe que pode opinar. Por enquanto, não tem nada regendo isso: deixa vir, deixa se expressar. Com Mercedes e Josafá, a novela fala do amor maduro, que não é dos jovenzinhos... Da cama... Isso é engraçado, meus avós vieram da Sardenha (Itália), e sempre se falou em casa que, na velhice – pelo menos no tempo dos meus avós lá –, os velhos se casavam para se esquentar no inverno. Isso, para mim, não é uma história de folhetim. Sempre em casa se falou de como os velhos se juntavam, porque se amparavam. Porque é o seguinte: pode não ter sexo, mas tem eros. E sem eros ninguém vive. Pode até nem ter sexo, mas o erotismo existe. É observação de vida.
Estávamos falando do personagem gay que Eriberto Leão interpreta, e como isso tem esquentado a novela. E não tenho como não fazer uma relação com o casal que você fez com Nathalia Timberg, em Babilônia, e o beijo que vocês deram e que chocou.
Foi um beijo suave, de amor, sem erotismos, nem sexualidade, mas tenho impressão que hoje não causaria nenhum escândalo. Três anos depois, se eu e Nathalia nos beijássemos numa novela – não com tanta pureza, até poderia ter mais avanços –, não sei se teria aquela grita toda.
Acha que andamos para frente em algumas questões?
As coisas caminharam bastante. Geralmente, nas novelas passadas, quando tinha um amor que não fosse hétero, sempre ia devagar, mas, até chegar, é no final da novela. Mesmo a novela do Walcyr (Carrasco, Amor à Vida), o (Mateus) Solano só beijou no último capítulo. Mas eram namoros que começavam dentro da novela. No caso da Babilônia, era um amor que já vinha de 40 para 50 anos, de vida em comum. Hoje não causaria isso.
No ano passado, sua filha, Fernanda Torres, lançou o livro dela (A Glória e Seu Cortejo de Horrores), com sua participação, no Teatro Oficina (que disputa com Silvio Santos o terreno ao lado). O que significa aquele espaço?
Na sequência de tanta desvalorização cultural que estamos sentindo ao longo dos últimos anos, o Oficina é o símbolo da resistência cultural deste país. Nem quero restringir só ao problema teatral. E acho que o Zé Celso é a mola corajosa, vital e centro dessa resistência. Vai além daquele espaço no Bexiga.
No ano passado, a classe artística se manifestou contra a censura na arte, inclusive você. Por causa de uma postagem, você recebeu ameaças na internet.
É... Quando acontece a primeira vez, você pensa: onde estamos? Isso é uma visão nova de um organismo social. Publicamente diz que vai te esbofetear, te matar, vai fazer, vai acontecer. Mas é isso agora?
Você deve ter ficado muito assustada, não?
Sim, mas é mais o susto com a possibilidade ligada a uma novidade absoluta de comportamento. Não sei como é diante da Justiça. Se alguém, diante de pessoas, ameaça de morte uma outra pessoa, não sei se isso pode abrir um processo contra essa pessoa. Não sei se os processos estão valendo neste país.
Justamente eu ia perguntar se você tinha entrado na Justiça, porque é possível identificar as pessoas que fizeram os ataques.
Não, não.
E por quê?
Acho que estão ameaçando de morte muitas pessoas pela internet. É um ato de liberdade deixar as pessoas ameaçarem outras pessoas de assassiná-las? Então, a gente não pode fazer nada? Estamos numa era em que ou censura tudo, ou libera tudo. Não há uma real legislação ainda sobre esse mundo das ameaças brutais, vitais. É preciso mover montanhas para chegar a quem ameaça. É complicado, e é novo. Acho que a gente ainda está muito em cima dessas crises contemporâneas dentro da liberdade da internet. Não sei o que vai acontecer daqui a 500 anos.
Você deve estar acompanhando as mulheres denunciando assédio. Isso também é um reflexo dessa nova era?
Acho que o estupro é um crime inafiançável, não tem perdão. Não só estupros com mulher, mas com homens também.
E há casos de anos atrás que só estão vindo à tona agora.
Acho que nunca é tarde para se falar o que se quer falar, mesmo que seja algo que levou 20, 40 anos em silêncio. A gradação do que é mais criminoso ou menos criminoso, aí não sei. Sei que, quando é algo que não é aceito e vai para a força, é um ato criminoso. Botou a mão no joelho, não quer a mão no joelho, manda a mão na cara. Levanta e bota a boca no mundo, seja onde for, num bar, num trem, com chefe. Hoje em dia acho que há um movimento forte para se dizer que não quer.
Você disse, certa vez, que mulher que depende de homem está perdida.
Mas é verdade. Economicamente.
Uma feminista falaria que você é feminista, mas não sei se você vê dessa forma.
É porque tem a ativista e tem a atuante. Eu sou a atuante, não sou ativista. Acho que feminista tem atividade de frente, condutora. Simone de Beauvoir é uma feminista. Então, quem sou eu perto desse tamanho, mas atuante eu sou. Vim de uma família de mulheres fortes. Acho que mulher que casa para o homem ser seu INPS está perdida.
O filme Central do Brasil faz 20 anos agora em 2018.
Eu só tinha 70 anos (risos). Faço 90 no ano que vem.
Para você, foi um dos momentos especiais da carreira?
É, eu nunca esperei nada parecido.
Eu estava revendo sua entrevista a David Letterman na época, ele chegou a perguntar se você tinha preparado um discurso caso ganhasse. Você tinha?
Não, nem ia ganhar, não tinha condição. Chegar ao Globo de Ouro e ao Oscar, sentar naquelas cadeiras, já foi o máximo. Eu tinha de ganhar da Meryl Streep, da (Cate) Blanchett e da menina que ganhou. A (Gwyneth) Paltrow. Foi muito engraçado no Letterman, porque ele me olhava com muita curiosidade, e também olhei para ele com muita curiosidade. Era uma sul-americana que ninguém sabia de onde eu vinha, de 70 anos. É uma cultura diferente, uma indústria fechada. Não estou achando que isso está errado, fui apenas uma visita, o que me honrou muito. Tenho muito orgulho por mim, pelo filme, pelo Walter (Salles, diretor), pelo Vinícius (de Oliveira, que dividiu as cenas com ela).