A cena é rotineira. Todas as segundas-feiras, por volta das 14h, um grupo de pelo menos cinco pacientes do setor de psiquiatria do Hospital Geral deixa os leitos, acompanhado por dois ou três funcionários, em direção à Vila Olímpica da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Por lá, a troca de roupa e o pulo na piscina do complexo esportivo da universidade. A supervisão é de Silvana Maziero, coordenadora do Serviço de Recreação Terapêutica do HG chamado Brinquedos de Plantão, que ouve um sonoro “Ah!”, quando anuncia que o tempo da aula/recreação terminou e é preciso retornar ao sexto andar do hospital.
Estimular sociabilidade, integração e enxergar a vida literalmente embaixo d’água são alguns dos objetivos deste pioneiro projeto posto em prática há quase 10 anos, numa parceria do hospital com a UCS. Nadando com Sentimento é o nome dado à medida terapêutica inovadora que beneficia pacientes com as mais variadas patologias psiquiátricas, que desde 2008 frequentam semanalmente a piscina da Vila Olímpica a realização de atividades lúdicas e de recreação.
– Eu os chamo de alunos. Dentro da água, há uma aproximação física e quando isso acontece, tu consegues te abrir melhor, te expressar melhor, verbalmente falando. Percebo que muitas vezes eles estão dentro da água e me trazem questões de emoção, social, de relacionamento, de percepção, que fora da água não conseguiriam falar. Nesse momento de proximidade, em que professor e aluno ficam no mesmo nível, eles conseguem se abrir muito e exteriorizar esses sentimentos – enaltece Silvana.
A idealizadora deste projeto também é só sorriso quando traça um paralelo de tudo o que envolveu a ação desde o início destas atividades aquáticas, fruto de um pedido de um paciente.
– A ideia surgiu enquanto passeávamos com os pacientes pela universidade. Sempre tive essa ideia de tirar os pacientes da unidade psiquiátrica, das paredes, até para mostrar para eles algumas outras oportunidades e num desses passeios um deles me disse: “com toda essa piscina, por que a gente não pode entrar?”. Fiquei com uma pulga atrás da orelha e fui atrás. Como sou formada em educação física, as coisas ficaram mais fáceis. O coordenador da época achou muito interessante o projeto, encaminhei para a direção do hospital, que também achou interessante e liberaram as piscinas para virmos – recorda Silvana, que também é especialista em Educação e Ensino Especial.
Mas nem sempre foi assim. Silvana lembra que havia muitas desconfianças por parte da comunidade e autoridades, principalmente por envolver pacientes com casos de esquizofrenia, automutilação, agressividade, usuários de drogas e com histórico de tentativas de suicídio:
– Acharam uma loucura que saíssem do hospital para vir a uma piscina, que pode ser perigosa, por ter possibilidade de afogamento. Não teve uma boa aceitação. Mas a partir do momento em que os pacientes começaram a vir e se percebeu um vínculo entre profissional e paciente, que a água favorece a socialização entre eles, tudo mudou. Como são adolescentes e há uma resistência um pouco maior, as atividades lúdicas na água favoreceram isso, consegue se integrar e, inclusive, se movimentar melhor.
Dentre as atividades na piscina, estão a natação propriamente dita e a realização de brincadeiras e atividades lúdicas com bola, objetos de piscina para proporcionar a oportunidade de utilizar ou frequentar uma piscina, talvez em uma única vez na vida, em alguns casos, um projeto pioneiro no país, segundo a coordenadora.
Mais de 1,2 mil pacientes já foram atendidos
Dos sete leitos destinados ao setor de psiquiatria do HG, seis são dedicados a crianças e adolescentes e um às gestantes, que ficam de 10 a 15 dias internados. Em média, 10 pacientes são atendidos por mês, o que numa conta rápida se percebe que mais de 1,2 mil pessoas participaram das atividades aquáticas nestes nove anos de projeto.
Além da coordenadora, a enfermeira Clenice Pudlo acompanha as atividades. Há dois anos no setor, ela testemunha semanalmente melhoras no quadro clínico dos pacientes:
– É interessante. Eles se sentem inclusos por saírem do hospital. Todos relatam que gostam, ficam mais tranquilos, dormem melhor. Eles ficam eufóricos com a natação. Alguns preferem deixar os abrigos para serem internados.
A agenda dos pacientes é cheia no serviço de recreação terapêutica, com atividades de segunda a sexta. Na segunda, natação; na terça, yoga; na quarta, o programa de nutrição, dentro da cozinha do hospital; na quinta, atividade física com brincadeiras variadas; e na sexta, atividades lúdicas com objetivos pedagógicos.
“Parei para refletir sobre mim”
A proximidade na relação paciente-profissional é o grande predicado encontrado para definir a confiança que as atividades na piscina da Vila Olímpica da UCS proporciona. Quem afirma é a própria coordenadora, Silvana Maziero, que ano após ano comemora a consolidação do projeto.
– Me sinto mais motivada e alegre por ter conseguido colocar em prática essa ideia. Só quem percebe o olhar do paciente e a entrega de confiança, de reciprocidade, de elo que ele tem, sabe o que estou falando. Nunca um paciente fugiu desta atividade, nunca aconteceu nada fora do planejado, que não seja positivo. Temos uma confiança tão grande, que só estando nessa situação para sentir – detalha.
Clinicamente falando, a interatividade e a revelação de emoções e sensações tornam o projeto um medicamento sem restrições de uso, tendo em vista o depoimento dos envolvidos. Um deles, a jovem D., de 17 anos, há 15 dias internada, uma das mais velhas entre os pacientes da última semana.
– Gosto muito das atividades de natação, porque a gente se distrai bastante, esquece as coisas do mundo. Mudei muito, as aulas são muito legais, mudei meu comportamento, fiquei mais alegre, mais brincalhona. Foi bom porque parei para refletir sobre mim. Eu me cortava. Penso que a melhor maneira é conversar com alguém, ter alguém do lado. Se cortar não é um bom caminho. Eu gosto de tudo, tudo mesmo, dos amigos, da professora, das aulas – resume a adolescente porta-voz do grupo.
Para coordenadora, o conselho que fica a pais e aos familiares de pessoas que passam por situações semelhantes aos casos psiquiátricos dos pacientes se resume em uma palavra: amor.
– Quando se tem amor e olhar humanizado, a palavra aparece para indicar ajuda. Tenho um filho com síndrome de down com 18 anos. Quando ele nasceu parece que a gente aprendeu, que nasceu um amor quem sabe até maior juntos. Tudo isso se resume em amor, dedicação e humanização. Tendo isso, não precisa ter medo e não se enxerga dificuldade. Tenho de acreditar e mostrar para o paciente que ele é capaz, porque é só ele que precisa acreditar que é capaz – acrescenta a profissional, que não descarta ampliar o projeto para outras instituições e, assim, possibilitar um número maior de pessoas atendidas.
Arrecadação
O Hospital Geral precisa de doações constantes, de materiais que são destinadas aos pacientes e acompanhantes. Roupas, fraldas e produtos de higiene (como xampu, condicionador, sabonete, escova e pasta de dente) são alguns deles. Quem quiser contribuir, basta deixar as doações na recepção do hospital.