A atriz e cantora argentina Soledad Villamil é uma contadora de histórias nata. Através de personagens ou canções, dá voz a questões que considera pertinentes e reflete a produção cultural latino-americana. Por causa dessa representatividade, esteve recentemente na Serra para receber o kikito de cristal, honraria entregue a importantes figuras do cinema latino durante o Festival de Gramado.
Confira a entrevista coletiva que ela deu na ocasião, falando sobre arte, mulheres e fronteiras.
Qual a tua relação com o cinema, o cinema brasileiro e também com o cinema de realizadores do RS?
O cinema é um ofício que requer não apenas uma habilidade, mas muitas, onde nós atores somos uma pequena parte, mas onde há diretor de fotografia, cenógrafo, roteirista, diretor, iluminador, e uma quantidade de artesãos que fazem esse produto tão complexo que é um filme. Alguém vê um filme terminado e não sabe disso. E com respeito aos filmes brasileiros, bem, estou muito feliz, porque faz pouco tempo que fiz minha primeira película no Brasil. É um filme de um diretor gaúcho, Paulo Nascimento, e com pessoas bonitas, e atores e companheiros queridíssimos, que creio que com muito trabalho chegamos a um filme precioso que se chama Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos. Eu tive que falar português. Eu tive que trabalhar muito porque eu achava que eu falava português, mas quando comecei a ler o roteiro, compreendi que não. É meu primeiro filme em português, com Edson Celulari, com Leo Machado. Estou muito feliz com esse intercâmbio que, lamentavelmente, não é tão abundante como deveria ser pelo que temos em comum entre nossos dois países.
Tu escolhes muito bem os teus papéis. Qual o teu critério para fazer essa escolha?
A primeira coisa que penso quando leio o roteiro é se eu gostaria de ver como espectadora e se esse filme fala algo que me interessa ou que me comove. Esse é sempre o primeiro passo, muito antes de pensar no personagem ou em qualquer outro aspecto do projeto. Alguma história que eu sinta que tem que ser contada, que vale a pena ser contada e que eu possa acrescentar algo porque tem vezes que eu não me vejo para um personagem ou para uma história. Primeiro é o roteiro. E em seguida, o diretor, os atores, a produção, mas que vêm muito mais atrás que a história.
Tens papéis muito simbólicos no cinema latino-americano. Como combinas isso com tua vida de cantora?
São disciplinas diferentes, mas não são tanto. Eu acho que nós temos a necessidade de ter alguém que nos conte histórias, que nos leia contos, assim como para crianças antes de ir dormir. E o cinema é uma forma de contar histórias, assim como o teatro, e também como a música. As canções nos levam a outro mundo, a outras emoções, a imaginar outras coisas. E agora que acabo de gravar um disco, dei um passo a mais, que foi escrever todas as canções. Pensei dessa maneira: compor contando histórias. Não somente como intérprete, mas também escrevendo as histórias. É uma necessidade nossa que nos contem histórias, seja no cinema, no teatro ou em uma música que está de alguma maneira, preenchendo um vazio humano. Sem isso é como se não fôssemos humanos, não?
Como observadora, como vês as histórias que estão sendo contadas no cinema latino-americano?
Me parece que o cinema latino-americano tem muito a falar de si. O cinema latino-americano tem muitíssimos entrevistadores consagrados e entrevistadores ruins também, mas, agora, antes de mais nada, a batalha mais difícil do cinema da América Latina é a produção, agora estamos tendo na América Latina uma influência do cinema de Hollywood muito forte, não apenas nós, mas todo o mundo está sofrendo, e lamentavelmente é uma coisa que está crescendo e que cada vez os países têm mais dificuldade para produzir o seu próprio cinema, que conte sua própria história. E se uma sociedade, se um povo não pode contar sua própria história, o que ele tem? Assim como tem os desafios, o cinema latino deve ser muito criativo para contar as próprias histórias, da melhor maneira possível , e lutar muito para que não fiquemos sem as ferramentas para produzir.
As pessoas de maneira geral, leigos, acham que a maior referência do cinema argentino é Ricardo Darín. Para ti, no cinema argentino, quais são os outros nomes que são aparecendo?
Darín não é só uma referência no Brasil, mas na Argentina também. O que ele, de alguma maneira, simboliza, principalmente os anos 1990, a transformação do cinema argentino. Nessa época, tinha uma divisão muito grande entre cinema autoral e filmes comerciais, que eram menos interessantes pelo conteúdo. A partir desse momento que foram feitos muitos filmes diferentes, que eu tive também a sorte de protagonizar, se entenderam como outro tipo de cinema, onde se combina um cinema de qualidade com o comercial. Sínteses entre o comercial e o autoral. Nisso, o cinema argentino passou a ganhar muito público. E isso é uma expressão muito comum entre outros países. Essa síntese que se deu, que continua até agora, foi muito boa para o cinema argentino. Não passou a seguir apenas a linha do cinema independente, de autoria, mas sim passar a chegar a um público maior, que passou a poder ver filmes argentinos que antes não via. Esse é um benefício de todo o cinema. E Darín foi, de alguma maneira, a imagem disso, e segue sendo, porque vive fazendo projetos, porque é claro que realizou as principais produções da Argentina, então é uma contribuição imensurável, e ele, como ator e também como emblema dessa transformação do cinema argentino é o que mais se sustenta com o tempo.
Na tua opinião, como está colocada a mulher e o feminino no universo do cinema argentino, latino e mundial?
Este é um mundo extremamente sexista, infelizmente. Acho que, felizmente, as coisas mudaram, mas esses dias mesmo, lendo uma nota na internet, sobre a diretora de Mulher Maravilha, vi que usualmente, um diretor nos EUA cobra 3 milhões de dólares, e ela só pediu 1 milhão. E quando a chamaram para produzir o Mulher Maravilha 2, ela pediu 3 milhões, e eles disseram que não, não poderia ser. E, veja, isso é um exemplo do que significa ser mulher dentro do sistema machista, onde muitas atrizes de Hollywood vêm declarando essa discriminação, que existe a respeito dos salários, e dentro dessa situação a maior parte dos diretores é homem, as diretoras mulheres são a proporção de apenas 20%, na Argentina ou no mundo. É um terreno sobre o qual ainda temos muito o que percorrer. O que está claro é que a participação feminina é indispensável para qualquer arte, inclusive ao cinema. Creio que isso deve ser levado como fator importante para a curadoria, mas não como uma condição meramente de gênero, os filmes são bons ou ruins, não importa se dirigidos por uma mulher ou por um homem. Não vou assistir a um filme unicamente por ser feito por uma mulher, esse seria um ponto de vista errado, os filmes são feitos por seres humanos, e alguns são bons e outros maus, e alguns seres humanos dirigem bem e outros mal, independente de serem mulheres ou homens.
Muitos diretores têm defendido as políticas aplicadas ao cinema e à cultura. E na aplicação dessas leis todo o cinema cresceu nos últimos anos, e creio que também o cinema argentino. Como tu vês a relação do cinema com o financiamento, principalmente norte-americano?
Com temor. É um momento particularmente difícil. O cinema é uma indústria subsidiada, e não pode não ser subsidiada, os EUA subsidiam fortemente, não somente na produção do filme, mas nas salas de cinema, sobretudo nas distribuidoras. Nesse sentido, seria uma ingenuidade pensar que o cinema tenha que se defender disso, porque é bom ou ruim. Claramente a produção local desses lugares não acontece como antes, na medida em que o cinema por ser argentino, por ser brasileiro não pode desenrolar-se fora das mãos do poder, é uma coisa seríssima. E o que estamos vivendo agora é uma herança. Nos anos 1950, quando o cinema argentino era um cinema poderoso, e quando o cinema norte-americano já era realmente uma indústria, e se propôs o sistema massivo norte-americano para a Argentina, e se fosse negado eles não nos comprariam mais cereais. A política de Estado fez o que não era certo para os EUA promover o seu cinema. Creio que temos tido isso na Argentina, no Brasil, e até na Europa. Então, sim, temos que estar muito atentos.
Tu és ótima atriz, uma cantora admirável e ainda é linda. Como conjugar tudo isso? Quais são os teus desafios diários, cotidianos, teus estudos, tua formação? E tu pensas em virar roteirista, por gostar tanto de contar histórias, e talvez um dia diretora?
Acho que tudo nasce de uma sorte de obsessões, de algo que me proponho. Eu acordo de manhã e já estou pensando no que vou escrever, o que vou produzir. É como uma espécie de barulho que não para, e que a maneira que eu tenho de exorcizá-lo é fazendo, escrevendo, atuando, cantando. Juro que nasci para isso, e que não queria ser outra coisa. Sou mais vítima que criadora. E tento, em tudo, ser diferente, sinto que tenho que buscar diferentes maneiras de contar. Eu sinto que posso dar lugar e esse mundo interno, e essa máquina que não para.
Tu pretendes aproveitar seu papel de atriz e cantora para investires em um filme musical futuramente? Como tu vês esse gênero que é, apesar de famoso, muito criticado?
Um dos meus filmes preferidos é Cantando na Chuva. Eu adoraria ter o orçamento de La La Land para fazer um musical (risos). Acredito que o tempo passa e os gêneros necessitam ser renovados. E que fazer um musical clássico hollywoodiano, que, a mim agrada, fazê-lo hoje, que sentido tem, não é? Nós todos temos uma tradição grande de musicais no cinema argentino. Mas, hoje, tem que haver um diretor ou roteirista que tenha uma ideia realmente inovadora.