Em 1917, o cartunista fluminense Álvaro Martins, o Seth, exibiu no Cine Pathé, no Rio de Janeiro, uma charge animada que mostrava o imperador alemão Guilherme II ser engolido por um globo terrestre, transformado em um gigante após o imperador colocar sobre ele seu capacete de guerra. Kaiser foi considerado o primeiro desenho animado brasileiro, e Seth o primeiro cineasta de animação. Em 2017, muitas homenagens têm sido prestadas ao centenário do cinema de animação no Brasil, uma delas pelo Festival de Cinema de Gramado, que ocorre entre 17 e 26 de agosto. A forma de prestar tributo a Álvaro Martins foi agraciar com o troféu Eduardo Abelin um dos principais cineastas de animação do Brasil, o porto-alegrense Otto Guerra.
Premiado em 1984 por O Natal do Burrinho, melhor curta gaúcho daquele ano, Guerra cruzou sua trajetória pelo festival serrano diversas vezes nas três últimas décadas, sendo premiado em 1987 por Treiler, novamente na categoria curta-metragem, e indicado em 1994 por Rocky e Hudson, como melhor filme latino. Célebre por Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock 'n' Roll (2006) e Até Que a Sbórnia nos Separe (2013), aos 61 anos Otto prepara o lançamento do 14º filme, A Cidade dos Piratas, previsto para o ano que vem. Apesar das incertezas que pairam sobre a política brasileira _ com inevitável reflexo sobre o incentivo à produção audiovisual _ o diretor da Otto Desenhos destaca que nunca se produziu tanta animação no país.
Ao Pioneiro, Otto também fala sobre o bom humor com que encara vida e carreira, e aconselha jovens aspirantes ao mundo da animação: "É um tiro no escuro. Mas eu faria tudo de novo". Confira a entrevista:
Pioneiro: Em que situação o cinema de animação chega aos 100 anos no Brasil? Otto Guerra: Desde 1995, com o surgimento da Ancine (Agência Nacional do Cinema), o Brasil vem evoluindo bastante nas políticas públicas. Porque a indústria audiovisual no Brasil é a televisão. E a TV surgiu do rádio, e não do cinema. Houve essa separação lá na origem, e o cinema correu de uma forma meio independente. A vantagem da Ancine em relação à Embrafilme, que era o que havia antes, foi ter sido criada de uma forma muito mais livre, em cima dos erros da própria Embrafilme, como o corporativismo. Posso dizer que estamos num momento inacreditável em relação ao cinema. O fundo setorial do audiovisual cobra impostos do setor, que envolve a TV, e isso vai para um fundo de incentivo ao cinema. Esse reinvestimento vem funcionando muito bem, tanto que há séries brasileiras sendo exportadas para mais de 100 países. Ao mesmo tempo em que vivemos uma fase inédita, o Brasil atravessa uma grave crise institucional. O país, o estado, a cidade, está tudo uma inhaca, vivendo um retrocesso inacreditável. O Ministério da Cultura está destruído, mas ao mesmo tempo a Ancine sobrevive, pois foi uma autarquia feita à prova de golpe. Há 23 longas de animação sendo produzidos no Brasil e inúmeras séries de televisão. É difícil saber o que vai acontecer.
Um de teus trabalhos em andamento é A Cidade dos Piratas, adaptação de Piratas do Tietê, da Laerte. Em que pé está?
Em termos de roteiro, acho que esse é o melhor filme que já fizemos no estúdio, sem dúvida o mais trabalhado. Desde 1992 já fizemos 14 versões, participaram seis roteiristas. É um filme que pega o trabalho da Laerte nos anos 80, uma metáfora com os políticos que governam São Paulo. Só que como a Laerte já não gosta muito dos piratas, a gente manteve a coluna dorsal do filme, mas também misturou coisas do trabalho atual e questões da vida dela, como o fato de ter virado uma mulher. Virou algo como um filme paralelo. Está quase pronto. Dos 80 minutos do filme, 67 já foram animados.
Tu ainda tens o sonho de fazer uma animação do trabalho do Maurício de Souza?
Estou trabalhando com um grupo lá do Nordeste, que está fazendo uma animação da turma do Piteco, e eu vou ser meio tutor desse trabalho. O Mauricio é muito bom nos quadrinhos, mas nas séries de vídeo nunca teve a mesma pujança, porque é outro universo. A Mauricio de Souza é uma empresa familiar, um ano atrás eu mandei um e-mail, mas é algo que depende de investir tempo e grana. Pra conseguir montar um projeto e tocar é um trabalho colossal. Ir a São Paulo, se reunir com os produtores...se tivesse parceria até rolaria. Mas recentemente vi uma série da Turma da Mônica muito interessante, não sei quem está cuidando disso, mas ficou muito boa. Acho que agora estão acertando, assim como essa turma do Nordeste. Então acho que vai sair um filme bom do cara antes dele morrer.
E do Glauco?
O Glauco foi assassinado, então complica um pouco, porque depende da família. Pra agilizar uma produção envolve tempo e grana, aí fica difícil. Esses tempos chegou um pessoal de Caxias com um projeto muito legal, achando que era só eu tirar o dinheiro da gaveta e produzir. Pensaram que eu teria algum tipo de acesso, mas os editais estão cada vez mais complexos, para evitar as falcatruas. Mas eu adoro o trabalho do Glauco, talvez ainda faça uma sondagem. O Angeli, o Adão, a Laerte são amigos pessoais, o Glauco eu conheci muito pouco. No Brasil funciona muito bem a questão das parcerias. Quando fiz a animação das cobras, do Verissimo, ele sabia da situação financeira e mesmo assim disse pra fazer o filme. Sem essa proximidade é mais complicado. Tem que ligar, dizer que quer fazer o filme, aí já vão achar que tens interesse...
Qual o conselho para quem queira iniciar na animação?
Acho que a situação em relação à minha época piorou. Há uma pressão maior da família para orientar os adolescentes a seguir uma atividade que dê grana. Sem grana, tu dependes de coisas como a fé, porque não existe um mercado formal. Não é como ser engenheiro ou médico. É um tiro no escuro. Mas eu faria tudo de novo. Não poderia ter uma vida melhor. Não em relação à grana. A questão é que não tenho expectativas. Se tu baixas tua expectativa financeira, tu podes ser o que quiser. A questão é saber o que tu queres. Eu já morei muito mal uma época, mas queria muito fazer filme, então sentava a bunda na cadeira e desenhava 18 horas por dia. Era uma loucura. Na década de 80 havia mais de 40 produtoras em São Paulo, que praticamente só faziam comerciais e muitas fecharam. Eu direcionei a produção da Otto Desenhos para a ficção e consegui manter. Hoje em dia faço muito pouca coisa de comercial. Uma das últimas foi a dos Monstrinhos da RBS, que fizemos três vezes. Aquela de maltratar as criançinhas…
Tu disseste certa vez que não dá pra olhar pra vida de cara feia, que ela te olha com cara mais feia ainda. Esse continua sendo o teu jeito de levar a vida?Continua, porque não adianta ficar puto, ainda mais nessa área de total instabilidade e que tudo pode acontecer. Deixa seguir como tá, que tá ótimo. Se continuar assim, nosso país em no máximo 100 anos vai estar bem (risos). Mas falando sério, o Brasil está produzindo muito, espalhando produção para muitos países. Se por um lado a internet é a bruxa má, que veio destruir todo o sistema de mídias que a gente conhece, por outro lado ela também veio democratizar a parada toda. Não sabemos como vai ser, mas acho que uma fragmentação mesmo. A publicidade também está em uma crise total e nós estamos no meio do processo. Está tudo meio louco.
E a homenagem em Gramado, como tu recebeste?
Essa homenagem é um negócio que dá a impressão que o cara faz cinema mesmo. É meio surreal, me faz acreditar que eu existo, como se legitimasse isso tudo. Por outro lado também é legal que, quanto mais o teu nome aparece e ficas conhecido, mais tranquilo podes ficar quanto a ter uma estabilidade, embora eu não tenha um emprego formal (risos). Ajuda a fazer com que sejas chamado a outras coisas, como dar palestras... Aí pode cobrar um pouco mais (risos). Vou fazer que nem o (Deltran) Dallagnol, que aproveitou a m...toda com o Lula e foi dar palestras. Mas estou nesse mercado há 40 anos e agora é algo que já está sedimentado. Mesmo que queira, não consigo desfazer. Esses tempos fui fazer um curso de cinema, pra ter um curso superior, e na disciplina de animação estudei a mim mesmo. Não consegui entender muito essa parte...