Uma evolução da psicologia, mesclada à computação, à lógica formal e à neurociência e voltada ao autoconhecimento. Assim pode ser descrita a ciência criada pelo italiano Fabrizio Ranzani, a partir de 24 anos de estudos: a psicomecânica. Radicado em Bento Gonçalves, ele dá sequência por aqui ao trabalho iniciado ainda na Itália, de forma independente, e explica que a pesquisa está numa fase de revisão e integração dos resultados para apresentação ao mundo acadêmico.
– A psicomecânica é o estudo da mente tomando em consideração o equilíbrio das funções das partes, que são os órgãos nos quais a mente reside, no jogo das interações dessas funções e na superação das resistências envolvidas, quando a mente atua e se desenvolve num ambiente artificial – explica.
Ranzani conta que desde cedo se interessou pelo estudo da lógica. Pesquisando os operadores lógicos binários (as partículas “e”, “ou”, “ou ou”, “se então”, “se” e “só se então”), nasceu um especial interesse pela dificuldade que as pessoas em geral enfrentam ao tentar justificar os resultados da tabela de verdade do operador “se então”.
– Os conceitos de condição suficiente e condição necessária, implícitos nesse operador, podem resultar adquiridos de forma incompleta e ambígua, e isso pode degenerar na imaturidade das competências lógicas elementares e na persistência, em idade adulta, de seus usos em nível intuitivo – diz o pesquisador, formado em Ciências da Computação.
Segundo Ranzani, o ser humano leva uma vida totalmente intuitiva, numa espécie de metaconsciência. A falta de competência lógica, na sua visão, seria responsável pela dificuldade de lidar com traumas, que se tornam uma espécie de ponto cego psicológico e induzem ao medo de repetir as más experiências no futuro.
– Os conceitos de condição necessária (se vou fazer um bolo de morango, morangos são essenciais) e de condição suficiente (qualquer receita desse bolo serve) deveriam ser ensinados desde a infância. Por não se dominar esses conceitos e não se respeitar as condições lógicas é que ocorrem conflitos – defende, acrescentando que esse conhecimento pode ajudar ainda na prevenção e no tratamento de neuroses tipicamente urbanas. Confira a entrevista:
Pioneiro: O que é a psicomecânica?
Fabrizio Ranzani: Psicomecânica é um termo composto pela partícula grega psychê, que está por espírito, alma e, no nosso contexto particular, mente; e mechànica, do latim, significando estudo lógico das leis físicas relativas ao equilíbrio das forças no jogo do movimento dos corpos, e da superação das resistências envolvidas, por meio do uso de máquinas. Esses são os dispositivos criados para auxiliar agentes naturais que, por suas características físicas, precisam de forças superiores a do homem para serem utilizados. Psicomecânica assume então o significado de estudo lógico da mente, quando essa atua e se desenvolve num ambiente artificial. Mais especificamente, no ambiente urbano das sociedades modernas.Como iniciou e se desenvolveu a sua pesquisa? Minha pesquisa iniciou-se como exploratória, com o objetivo da busca de explicações cognitivamente satisfatórias sobre o tema da lógica formal, principalmente sobre o operador “se então” e os conceitos de condição suficiente e condição necessária. Prosseguiu com o levantamento e mapeamento de informações em bibliotecas e com entrevistas a professores e pesquisadores, para obter esclarecimentos sobre o material coletado. Foram submetidos questionários e testes de Peter Wason a diversos grupos – entre estudantes e profissionais de várias áreas –, com o objetivo de individuar os pontos críticos em termos de inteligibilidade e interpretação do material revisado e integrado. O conjunto informacional conseguido nesse processo de filtragem e refinamento, apontou nitidamente os problemas e as falhas que o afetam em termos não só descritivos, mas também funcionais. A esse ponto, a pesquisa se orientou na direção de explicativa-experimental. Isolaram-se os elementos teóricos – quais exemplos dedutivos/construtivos das funções expressadas pelos operadores lógicos, definições, tabelas de verdades – que apresentavam lacunas e anomalias conceituais. Esses elementos foram analisados e verificados por meio de um processo de reconstrução experimental das condições axiomáticas / formais, das quais se origina a mente. O resultado foi a descoberta dos aspectos estruturais e funcionais das operações lógicas.
O que esses estudos revelaram?
O processo todo, implicando o contato direto com as realidades psíquicas e cognitivas dos sujeitos envolvidos, revelou aspectos relevantes a respeito dos fenômeno, de pertinência da psicologia, da consciência, do raciocínio, da percepção que temos de nós mesmos, dos outros, do ambiente e da realidade em que vivemos. As informações armazenadas no inconsciente, o nível das competências lógicas, os processos computacionais, comportamentais, de decisão e os processos neuróticos se revelaram estritamente interligados. O processo de reconstrução experimental das condições axiomáticas / formais, das quais as operações lógicas se originam na mente, foi realizado tendo em consideração os atuais conhecimentos neurocientíficos sobre a estrutura do cérebro e o funcionamento das redes neurais biológicas. Isso revelou o surpreendente isomorfismo entre as funções e interações biomecânicas entre neurônios e circuitos neurais e as formas lógicas que os gregos, 2.400 anos atrás, descreveram na teoria da lógica tão refinadamente que chegou até os nossos livros acadêmicos.
De que forma essa ciência pode auxiliar no autoconhecimento?
Os gregos antigos (Crisippo, Aristóteles, entre outros), por serem uma civilidade dedicada ao estudo dos fenômenos naturais e sociais, com um nível da organização e interação social com amplo uso da linguagem e da dialética pelo entendimento compartilhado e a resolução de conflitos e das interpretações subjetivas da realidade, talvez pela primeira vez na história, focaram a atenção da mente sobre o funcionamento dela mesma. A consciência passou a ser sua metaconsciência. Hoje, os resultados e conhecimentos neurocientíficos e psicológicos dão a possibilidade de ver como um ser humano processa de forma lógico/intuitiva por parte de seu inconsciente, e como só se repetindo o processo (dos gregos) de colocar sua atenção ao estudo das formas lógicas elementares e aos processos biomecânicos que atuam na análise da realidade material pode-se desenvolver e adquirir instrumentos e capacidades lógicas/corticais. Ou seja, ser ciente dos erros de seu inconsciente e criar processos algorítmicos – esses também mecânicos – constituídos de microatitudes que o protegem das neuroses e frustrações de forma preventiva, e nos casos de pessoas que já desenvolveram as neuroses ou desequilíbrios neuroquímicos que instalam as neuroses como doenças no cérebro, podem se auxiliar para limitar e em alguns casos reverter essas situações.
Qual a ligação da psicomecânica com a capacidade lógica e dedutiva?
O cérebro é um sistema de computação biomecânico. Os neurônios constituem circuitos neurais através de interações eletro/químico/mecânicas. Apesar das crenças comuns devido à escassa divulgação científica, a consciência e tudo o que a ela pertence, emoções, raciocínio, livre arbítrio, crenças religiosas, comunicação, instintos, etc., é resultado das biocomputações dos circuitos neurais, nos quais ela surge de forma epifenomênica. Isso, ao contrário do que possa parecer na visão comum, não exclui a existência de Deus, nem desvaloriza os conceitos de caráter, emocionalidade, amor, espiritualidade. A lógica é simplesmente a descrição teórica das funções básicas explicitadas pelo sistema computacional. Nada mais, nada menos.
Aliás, qual a relação entre psicologia, ciências da computação, lógica e outras áreas abrangidas pelo estudo?
Não existe diferença alguma entre ciência da computação, lógica, psicologia e muitas outras áreas.
Qual o papel do teste de Peter Wason no contexto da psicomecânica?
O teste de Peter Wason (1966) representa exatamente o limite entre a operação mental que chamamos na teoria da lógica de “se então” (se chove uso o guarda-chuva), ou implicação, ou condição suficiente, e um exemplo na realidade física no ambiente onde o fenômeno acontece. É um excelente modelo e exercício para que a mente consiga se auto observar (o processo dos gregos anteriormente citado) e o córtex frontal e pré-frontal onde nossa consciência se forma possa ver e entender como as componentes físicos que a originam (as redes neurais de nosso cérebro) funcionam. Assim, a mente adquire consciência de como a computação lógico/intuitiva do inconsciente atua de forma ingênua e comete erros associativos fatais pela evolução sadia no ambiente urbano.
Como o autoconhecimento pode ajudar a prevenir o estresse, a ansiedade, a depressão e outras neuroses?
O desenvolvimento da metaconsciência por meio da prática da psicomecânica e do exercício da transposição do inconsciente, nas pessoas que ainda não desenvolveram neuroses profundas, auxilia a reconhecer e se defender das agressões constantes do ambiente urbano. Nas pessoas que já desenvolveram algum desequilíbrio neuroquímico devido à prolongada exposição ao ambiente urbano e a eventuais vivências de situações mais traumáticas que evoluem para as neuroses em patologias psicológicas específicas, a psicomecânica ajuda a lidar com os efeitos dessas patologias e a iniciar processos de reorientação que melhoram e, em alguns casos, podem até mesmo reverter o quadro.