Singularmente, desde os primitivos tempos pagãos já se faziam longas jornadas para prestar alguma espécie de tributo e gratidão. Depois, sucederam-se caminhadas penosas e sacrificadas para lugares considerados sagrados. Havia os peregrinos que iam ver dia após dia, o deus-sol morrer no mar nos finais de tarde, para renascer no alvorecer das manhãs seguintes. Rezam as lendas que o "Finisterre" teria antecedido exatamente o mesmo percurso de Santiago de Compostela. Aliás, lá estive com minha mulher, chegando de trem e não a pé – que sou cristão, mas não sou louco – envolvido pela aura dos mistérios da fé.
O que me leva a evocar a soturna romaria pelas vielas da Gruta de Lourdes, cercado de um ambiente místico, dos mais dramáticos que eu tenha presenciado em relação a seres vivos. Aquelas centenas de enfermos, carregados em cadeiras de rodas ou amparados por muletas, sobreviventes de graves sequelas neurológicas, transmitiam uma sensação de tristeza infinita. Ainda por cima à luz de tochas e velas, em busca do milagre da cura, entrecortado por gemidos, choros, os sussurros das orações e a entoação dos cânticos medievais. De não mais esquecer.
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Como jamais esquecerei a andança que mais me sensibilizou pelo mundo dos mortos, cravando um punhal em meu coração e lancinando a minha alma. Percorri, no inverno passado, os campos de concentração de Auschwitz, na Polônia. Posso dizer que eu perambulei as sendas do inferno, conhecendo de perto a perversidade humana elevada a sua máxima maldade – o imperdoável holocausto da insanidade nazista. À moda israelita eu depositei uma pedra sobre uma lápide na imensidão do silêncio da trágica solidão. E assim foi em Dachau, com a qual me compadeci quando eu era ainda muito jovem, palmilhando a extensa camada de neve espalhada ao redor dos pavilhões, câmaras de gás e crematórios, num tétrico cartão natalino.
Por aqui, nossa romaria sacra nos conduz ao Caravaggio, assim como quem tem boca vai a Roma e todos os caminhos levam à Meca. Por várias vezes, fui um andarilho desse roteiro de devoção. Nele há de tudo e de todos. Os que, contritos, realmente vão agradecer e pagar promessas. Os que sangram os pés descalços. Ou os jovens que se divertem como se fossem a um piquenique. Pela bucólica paisagem colonial, bergamotas e pinhões. E pouco antes da íngreme e desafiadora subida final, reforça-se a pança com pão e linguiça para que as preces se robusteçam. E uma vez bem feitas, um suculento prato de bucho para encher o bucho, jurando não cair nas promessas dos políticos e nunca mais votar em nenhum deles...