Foi cobrindo motins de presos, como a histórica rebelião de 1994 no Presídio Central de Porto Alegre, que a fotógrafa e jornalista Tatiana Sager conheceu o também jornalista Renato Dornelles, autor do livro Falange Gaúcha - A História do Crime Organizado no RS. O cárcere que serviu de pano de fundo para a amizade entre eles, também pautou o projeto profissional mais ousado da dupla até agora: o documentário Central - O Poder das Facções no Maior Presídio do Brasil. O longa, dirigido por ela e co-dirigido por ele, está em cartaz no GNC Caxias. A produção desvenda de forma clara e didática as engrenagens de poder que dominam o Central, já considerado o pior presídio do país.
Em 2016, o filme foi escolhido melhor documentário no Prêmio dos Direitos Humanos de Jornalismo e no festival Festin, de Portugal. Central também está entre os filmes nacionais mais vistos nos cinemas recentemente, um feito e tanto para uma narrativa que mergulha na complexidade de um assunto tão obscuro como o caos carcerário.
Tatiana conversou com o Pioneiro sobre os meandros das gravações do longa, com roteiro inspirado no livro Falange Gaúcha. Confira.
Pioneiro: Você já tinha feito um curta sobre o 'Central'. Como surgiu a ideia do longa?
Tatiana Sager: Sou amiga do Renato (Dornelles) há 30 anos pelo menos, a gente cobriu muito motim, muita coisa de polícia. Sou uma apaixonada por essa área. Em 2008, ele lançou o livro (Falange Gaúcha) e eu pedi os direitos. Comecei a colocar em editais por meio da Panda Filmes (da qual é sócia) e conseguimos ganhar um de curta para a TVE. Lançamos em 2012, o Renato foi roteirista. Tínhamos muitas entrevistas realizadas naquela época e, com esse material, já editamos um longa com enfoque no Central. Entramos em outro edital, que era de finalização, mas começamos a repensar todo filme. No primeiro corte, ainda não tinha a câmera dos presos.
Pois é, as cenas gravadas pelos próprios presos dentro das galerias são muito impactantes. Como essa decisão foi tomada?
Nessas galerias, que representam 80% do Presídio Central, só preso entra. Juiz, polícia, ninguém entra lá. Eu pensei "precisamos conhecer essa realidade". Como vamos falar do Central sem falar do que representa 80% do presídio? Daí começamos negociação com o juiz, que de cara autorizou nossa entrada. Daí começamos outra negociação, com a direção. Nós já conhecíamos, tínhamos gravado muito ali, mas em lugares para universitário ver, como o próprio filme diz. Ficamos três meses negociando com a direção, eles não queriam liberar de jeito nenhum. Nossa intenção era pelo menos falar com as lideranças das facções, que coordenam essas galerias. Eles conversam com a direção do presídio uma vez por mês e fazem reivindicações... Isso era outra questão surreal que queríamos muito ter gravado, mas não conseguimos a autorização. Estivemos nessas reuniões e entrou um segundo diretor, o major Albuquerque, que é sociólogo e comprou nossa ideia. Ele concordou que conversássemos com os presos. Na verdade, nem ele sabia como se passava a vida dentro dessas galerias. É uma curiosidade também para quem tá lá dentro entender como funciona. Nos reunimos com líderes de cinco facções: os Bala na Cara, Manos, Abertos, Farrapos (da região norte) e Conceição (da região central). Eu queria também uma entrevista deles, tentamos muito. No último dia, eles disseram "não". Fiquei muito brava, falei "vocês não cumpriram palavra de cela". Eles levam muito a sério isso, eles trabalham com palavra, é uma questão de honra. Eu acho que eles ficaram até constrangidos. Então, eles pelo menos liberaram a câmera. É claro que era sob o olhar deles, não vou dizer que não houve um filtro, já que foi a prefeitura dessas galerias quem gravou. Mas é muito mais material do que qualquer um já teve dentro dessas galerias.
Como fazer um recorte narrativo num assunto tão amplo?
Tudo aquilo que eu queria saber sobre o presídio antes de fazer o filme, acabou sendo mostrado. Está ali, por exemplo, o aliciamento que o preso acaba sofrendo. De dois anos, quando gravamos, para cá, algumas coisa já mudaram. Naquela época tinha galerias de primários e agora não tem mais, ou seja, o preso que entra já tem que escolher uma facção. Ele vai ser cobrado para sobreviver ali dentro. No filme, a gente provou como isso realmente acontece. Essas facções e lideranças têm um lucro absurdo. Cada preso custa em média R$ 1 mil por mês para seus familiares, que tem que batalhar para conseguir isso.
O filme aborda ainda a urgência da questão do tráfico de drogas dentro do presídio...
A maioria dessa droga e das armas e telefones que entram lá, entram através de corrupção, normalmente de funcionários. Muito pouco é pego através de familiares nas visitas. Hoje é mais do que certo que se não houvessem drogas, o presídio explodiria. No final do filme tem um guri que diz "sou usuário há 14 anos, mas quando sair do presídio vou parar". Para mim é um dos depoimentos mais fortes. Como é que uma criatura que está lá paga por essa droga? Talvez ele vá sair dali vai cometer crimes para pagar dívidas que fez lá dentro. O preso pode entrar de uma forma, mas vai sair pior, vai sair com muita dívida. Vai ter que cumprir funções aqui fora que nem imaginava. É um sistema doente, é perverso demais. E quem está organizando isso é o Estado e a sociedade. Imagina liberar para que líderes de facções coordenem essas 500 pessoas que estão ali (numa galeria)? É mais do que claro que as pessoas entram lá para virar escravos, soldados dessas lideranças. E depois essas pessoa saem. Para mim, o aumento da criminalidade está altamente explicável nesse filme.
Tu tinhas ideias de quão complexa era essa engrenagem toda?
Não tinha, juro! Eu fiquei tão apavorada com isso tudo. Numa das últimas reuniões que participei com juiz e líderes de galerias, eu estava tentando convencê-los de colocar a câmera lá dentro. Tinha que mostrar como eles estavam sofrendo para os direitos humanos, eu dizia que queria denunciar. Daí um dos líderes de facção revidou: "Ah, tu queres denunciar, daí vão parar de colocar gente lá dentro". Não tinha me caído a ficha que, para a liderança, quanto gente mais melhor. Nunca ninguém tinha me falado isso. Comecei a chorar, de raiva comigo mesma, eu não tinha entendido nada, me senti uma idiota. Eles não querem que denuncie. Não é o que o preso comum diz, mas para os chefes das facções, quanto mais gente melhor.
Essa estabilidade das facções acaba sendo uma das conclusões do filme...
Sim, o Renato (Dornelles) cobre polícia há 30 anos, é um dos maiores especialistas na área, e ele também não sabia disso, de todo esse dinheiro, de quanto custa cada preso para seus familiares. Uma média de R$ 200 a R$ 300 por semana que eles levam, por que senão preso não sobrevive lá dentro. Existe esse silêncio, porque o negócio lá dentro é muito lucrativo, eles não querem chamar atenção da sociedade. No semi-aberto é onde acontecem as mortes, lá dentro do presídio a coisa é mais tranquila. São cerca de R$ 500 mil de lucro por mês em cada galeria. O Central é como um escritório.
O fato de tu seres mulher dificultou as negociações em algum momento? Como tu foste tratada dentro do Central?
Foi a coisa mais tranquila do mundo. Eu acho que fui mais respeitada lá dentro do que me sinto fora, como mulher. Talvez tenha sido respeitada até mais do que os homens da equipe. É o respeito que os presos têm, já que 80% das visitas que eles recebem é de mulheres: mães, esposas. Existe uma ética, um estatuto quase implícito de que não pode agredir, tratar mal, nem olhar muito para uma mulher. Há respeito absoluto pela mulher lá dentro. São elas que trazem um pouco de conforto para eles. Por outro lado, fiquei impressionada com a homofobia, eles não aceitam homossexualismo. Um ponto muito positivo do Central foi eles terem montado uma galeria para os travestis. Lá eles estão mais tranquilos, mais protegidos. A maioria dos presídios do Brasil não tem essa separação.
Me conta um pouco sobre a série de tevê que a Panda Filmes vai filmar sobre presídios do Brasil. O que vocês pretendem abordar?
A primeira licença está acertada para exibição na Prime Box TV. Pretendemos começar a gravar dentro de um ou dois meses. Estamos negociando uma segunda licença para o History Channel, eles nos procuraram. Vamos gravar em vários estados, em alguns capítulos específicos com assuntos como ressocialização, o início das facções (PCC e Comando Vermelho), as mães e companheiras de presos. Outro capítulo é sobre a economia toda que gera em torno do presídio. Ideia é mostrar a situação carcerária no país.
Tu sentes que o filme tem cumprido uma função social?
Desde que finalizei o filme, no final de 2015, vou pelo menos uma vez por semana na Fase em Porto Alegre para mostrá-lo aos menores infratores e discutir com eles. Tem sido bacana e tenho visto que tem mudado. Acho que pelo 50% dos menores infratores já viram o filme. É um diferencial para mudar a percepção deles, porque antes o grande sonho era ir para o presídio "ser grandão". Mostrando as condições que eles vivem lá, os guris ficam meio apavorados. (...) Fiquei meio chocada também porque fomos apresentar o filme a promotores do Ministério Público e eles não tinham noção que a situação era aquela, ficamos mais de duas horas discutindo sobre. Eles diziam "temos que fazer alguma coisa para muda isso". Então, acho que está atingindo. É muito urgente fazer alguma coisa, até pelo fato de conservadores ainda acharem que a solução é a diminuição da maioridade penal. Imagina só!
A ideia do caos carcerário é explícita no filme, tu acreditas que é possível solucionar essa situação?
Há um tempo, presídio era assunto que ninguém queria ouvir falar, bandido bom era morto, se desse para implodir tudo aquilo implodiriam. Isso sem se dar conta de quem está ajudando a organizar essa situação toda, é o Estado. É ele que está sendo irresponsável, que devia estar controlando, não dando a chave dessas galerias para as lideranças de facções, controlando 500 soldados. É óbvio que isso vai vir para a rua. Outro problema muito sério é que, ali no Presídio Central mais de 50% dos presos foi pego por tráfico de drogas. É urgente se pensar na regulamentação, tem que fazer alguma coisa. Para mim, essa é a única saída que vejo, é difícil. Mas acho que não vai ser feito nada disso, minha percepção é de que isso só está começando e a criminalidade vai aumentar muito ainda. O que o governo está fazendo, ou o que o governo faz de conta que está fazendo, só aumenta a criminalidade. O que vemos hoje é uma piada.
:: Série
Financiada pelo Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), a série de TV Retratos do Cárcere será produzida pela Panda Filmes. Serão 13 capítulos de 26 minutos cada. A estreia deve ocorrer até o fim de 2018.
:: Veja o trailer