Ela ainda é uma menina, recém completou o seu primeiro ano de vida, mas que lhe significa o triplo. Reparem que eu não estou me referindo a uma criaturinha humana e, sim, a uma pequena gansa, adotada após perder-se faminta no meio de um brejo, onde se extraviou por descuido. Quantas noites ela andou coberta pelo tétrico manto do pânico, afastada abruptamente do convívio dos papais e de seus irmãozinhos! Muito provavelmente sabedora que nunca mais os iria rever, com eles brincar e trocar carinhosos afagos.
A pobrezinha, entretanto, foi contemplada pelo girar das rodas da fortuna. Em seu desastrado azar inicial ela acabou encontrando a sorte grande. Daqueles prêmios da mega-sena. O homem simples que a recolheu e a acolheu, amputado de uma perna, é dotado de enorme e generoso coração. E nos confidenciou outro dia, na praia, que a perna mecânica é plenamente compensada pela existência de sua filhinha de estimação a quem batizou com o nome de Kate, digno de uma princesinha. Ambos se preenchem e se completam, suprindo afetuosamente as suas relações sentimentais. Dá, até, para confundi-la com um cisne-fêmea, conquanto a coloração malhada.
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Pois, essa Kate foi avistada por nós à beira-mar, a nos arrancar pontos de exclamação e de exaltação. Algo assim como uma visão inesperada. De saída, eu achei que tinha me equivocado, conjecturando se tratar de um cãozinho esquisito. Ao conferir, para minha surpresa, constatei que estava diante de uma jovial gansa. Ainda bem garotinha. Bonita, charmosa e, mais surpreendente ainda, conduzida por uma espécie de delicada coleira que ela aceita vaidosa em seu pescoço fininho, achando que seja um colar de pérolas preciosas.
Seu andar é mais ou menos elegante, às vezes desengonçado e até molenga. Vê-se de imediato que é bastante ciosa de si. Findando o banho nas mansas ondas recusou-se a entrar no carro, enquanto não totalmente sequinha. Sacudia ao sol a sua penugem molhada com extremo capricho. Quando acariciada a meiga Kate revela a sua formosura, corrigindo com todo o aprumo as penas retorcidas, como se estivesse arrumando o vestido para algum passeio mais cheio de grau ou mesmo um improvável baile de gala. Ou, de gansos.
Na despedida, ela me fez concluir que o amor transcende a dimensão humana. Aliás, muito pelo contrário. Enquanto os homens matam por bananas, por pares de tênis, por um celular, sem falar nas guerras absurdas, os bichos, também criados pelas mãos de um Ser Superior, continuam nos dando lições valiosas de amizade e fidelidade. Exemplos não faltam e são inúmeros, incontáveis. Ah, como seria bom que existissem tantas maravilhosas Kate por esse insensato mundo! Ficamos muito felizes ao vê-la partir com seu dono, sentada no banco traseiro, altiva e orgulhosa, a nos espiar imperialmente pela janela.