Uma Globeleza vestida, com figurinos que remetem a manifestações folclóricas de diferentes regiões do Brasil, chamou a atenção esta semana e reacendeu a discussão sobre questões como gênero, objetificação da mulher, machismo e racismo. Depois de 15 anos aparecendo praticamente nua, com o corpo pintado e tapa-sexos minúsculos, a personagem, encarnada pela primeira vez em 1990 por Valéria Valenssa, surgiu na vinheta de Carnaval da TV Globo com trajes que fazem referência a representações carnavalescas de diversos estilos.
Acompanhada de outros bailarinos, Érika Moura, Globeleza desde 2015, aparece com roupas temáticas de maracatu, axé, frevo e bumba-meu-boi dançando a tradicional música-tema que tem como refrão "na tela da TV, no meio desse povo, a gente vai se ver na Globo".
A mudança na caracterização da personagem foi bastante comemorada, gerando milhares de comentários nas redes sociais. Doutoranda em Educação pela Unisinos e militante da Marcha Mundial das Mulheres em Porto Alegre, Vanessa Gil considera a nova Globeleza uma conquista do movimento de mulheres e, especialmente, das mulheres negras, que há muito tempo vêm problematizando essas discussões.
– É claro que é uma jogada de marketing, mas que repercute na sociedade. Ficou muito evidente que, após episódios de racismo contra a Maju (Maria Júlia Coutinho, conhecida por apresentar a previsão do tempo na emissora) e a (atriz) Taís Araújo, por exemplo, alguma coisa tinha de ser feita. Ficaria incoerente a emissora se declarar contra esse tipo de atitude e, quando chegasse o Carnaval, expor uma mulher pelada.
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No entanto, Vanessa não acredita que o machismo e o racismo tenham diminuído. Pelo contrário. Ela acredita que a exposição de casos como os de Maju, Taís e, mais recentemente, da cantora Ludmilla, também alvo de comentários preconceituosos na internet, mostram que feminismo e racismo são pautas que têm crescido e devem ser discutidas diariamente.
Ela também chama a atenção ao fato da mudança de olhar do Carnaval chamar a atenção para outras manifestações carnavalescas menos difundidas pela mídia de massa. Porém, considera hipócrita o discurso de que ao invés de investir em Carnaval, os governos deveriam destinar verbas para áreas como saúde, educação.
– Como se Carnaval não fosse educação – compara Vanessa.
A favor da continuidade
Ativista negra e fundadora do Coletivo Criadoras Negras RS, Monique Rocco vê com restrições a nova Globeleza.
– Vestir a Globeleza não vai mudar anos de opressão, silenciamento e objetificação da mulher negra. Há uma praxis da mídia, que usa o corpo da mulher como objeto de consumo. É importante refletir, que não se trata de "vestir a Globeleza" mas sim de desconstruir toda a ideia de "Globeleza" como representação da mulher negra brasileira.
Ela argumenta que a mulher negra sempre foi marcada por estereótipos negativos, ligados à sensualidade, à "cor do pecado", e representando personagens como subalternos, como empregadas domésticas e barraqueiras.
– Mudar a vinheta não quer dizer que seja mudança estrutural, significando que a representatividade da mulher negra na TV a partir de agora será outra. Não vou celebrar se não houver continuidade. Acho bonito ver outras representações culturais do carnaval brasileiro, ver nossa cultura descentralizada, apesar do meu profundo desgosto ao ver que é uma mulher branca que carrega o turbante, símbolo ancestralidade negra.
A opinião de Monique é compartilhada pela jornalista e ativista do movimento de mulheres negras Angélica Basthi.
– A Globeleza é a personificação da hipersexualização da mulher negra ao longo da história. Vesti-la no contexto atual corresponde mais à onda de conservadorismo e à onda de retrocessos nos direitos sexuais e reprodutivos, embora há quem diga que seja uma resposta às denúncias de machismo e preconceito. Estão usando o estereótipo da mulher negra para reforçar esse conservadorismo. É preciso implodir a imagem da Globeleza para realmente refazermos o imaginário sobre a mulher negra, como já indicaram alguns estudos acadêmicos.