Desde que saiu de Caxias e foi para São Paulo, em 1982, Luís Antônio Giron mergulhou no mundo do jornalismo cultural, afirmando uma trajetória significativa de produção crítica sobre a cultura brasileira. Entre pesquisas e análises sobre as artes brasileiras, desenvolveu um pensamento que olha com argumento de autoridade, certo ceticismo, e alguma esperança aos nichos de resistência criativa neste ambiente artístico que conjuga as frentes virtuais e os embates reais do fragmentando contexto da cena contemporânea .
Como analisa a crise do jornalismo cultural e o fim dos cadernos culturais?
Tem dois aspectos importantes. Primeiro, é a crise do jornalismo como um todo e, por consequência, do jornalismo cultural, que sofre com a entrada da internet e a força das redes sociais. Isso tirou a capacidade de mobilização que o jornalismo cultural tinha. O segundo aspecto é uma crise que a própria cultura vive, por que também ela não consegue entusiasmar o público, sofrendo concorrência do mundo digital. Há uma substituição por uma espécie de cultural digital, uma cultura geek. A cultura se desterritorializou da vida cultural. E o Brasil sofre de forma específica isso. A internet transformou e fagocitou o jornalismo, ela se apropriou do conteúdo jornalístico, que migrou para a internet.
Para o bem e para o mal, quais são os desdobramentos deste fenômeno?
A coisa boa é a possibilidade de um alcance e de um público maior pela internet. Ao mesmo tempo, os padrões que os jornalistas culturais utilizavam estão se adaptando aos novos tempos da internet. O jornalista cultural tem que adaptar aos formatos das redes sociais, que não trabalham de forma unidirecional, como antigamente nos jornais. Para a internet, o entretenimento é mais importante do que a notícia. Estamos vivendo o que os americanos chamam de a era da pós-verdade. Com a eleição do Trump se viu que é possível gerar notícias que não tenham fundamento algum. Mas é também possível gerar conteúdo de entretenimento atraente. Ainda é possível, através de links, direcionar a leitura para textos de maior fôlego. Não vejo com pessimismo isso. É uma ressignificação da ideia de jornalismo e de jornalismo cultural, que tem sempre o desafio de ser relevante.
Qual o aspecto dessa transformação na cultura?
A cultura sofre uma concorrência da internet por que a ideia de cultura deixou de existir do jeito que existia há 20 anos. Na internet, ela é confrontada com uma quantidade absurda de conteúdos, que não pertenciam ao seu domínio, mas acabaram se acoplando a ela. Houve uma migração que misturou esses conteúdos. Para mim, cultura não é só espetáculo, é a vida diária das pessoas e como elas interagem com as suas expressões. Então, as comunidades culturais, os artistas, os gestores culturais, têm que lidar com as diferentes facetas culturais, têm que se adaptar aos novos tempos. O mundo cultural, intelectual, das artes, dos livros, esse mundo antigo, é quase impossível conviver com a internet. Tem que se adaptar também. É menos atraente se estes formatos se apresentarem isolados do mundo conectado. Muitas vezes artistas e produtores entram num confronto, parecendo não se adaptar a isso. Na gestão cultura isso acontece também. Tem aspectos como a questão da renúncia fiscal, criação de eventos, pela Lei Rouanet e outras. São canais importantes, mas que emperraram com o tempo. Essa discussão, embora tenha um caráter muito político, precisa ser feita. Estas leis precisam se adaptar o novo mundo. É importante manter a Lei Rouanet, pois ela propicia que se faça cultura no Brasil todo indiscriminadamente. Mas é preciso criar novos mecanismos para que isso se torne relevante do ponto de vista da cultura digital também. Hoje, é impossível separara cultura geek da cultura pop e erudita. Então, nesse panorama, o jornalismo cultural está sofrendo uma disrupção muito importante. É preciso saber lidar com esta cultura de disrupção, de perturbação do sistema. E a gente tem um problema sério da indústria da informação. O (jornal em) papel deixou de ser a mídia mais importante.
Como você a cultura das celebridades nesse contexto?
Ela é decorrência natural dos sistemas de comunicação. Ela começou na ópera, no esporte, na literatura, nas artes plásticas, no cinema. O que está acontecendo hoje é uma exacerbação de uma banalidade dentro do star system, algo que vem dos Estado Unidos. Mundialmente, hoje, a cultura das celebridades enfatiza aspectos escatológicos, bobos, detalhes imbecis, sobre a vida das celebridades. As Kardashians são a própria encarnação desse novo mundo, que é o mundo da fofoca. E a maior parte dos consumidores de internet querem essa informação rápida, não quer conteúdo profundo. Mas, com o tempo, acredito que isso vá ganhar densidade. E a mídia dominante da cultura das celebridades é o celular.
O sertanejo é a nova mpb?
A música brasileira é um universo muito rico. Ela tem uma variedade, quantidade e qualidade muito grande também. Tem a música popular, tem o samba, a mpb, que seria um samba universitário surgido nos anos 1960 e os caras até hoje estão aí influenciando as novas gerações. Aquilo que era mainstream, que era o samba, por exemplo, virou um nicho. O que acontece hoje, do ponto de vista das fatias do mercado, é que chegou-se à conclusão que a música sertaneja é a mais ouvida no país. Há dois anos, foi feita uma pesquisa pelo IBGE, que chegou a esta conclusão: o som do Brasil é o sertanejo. Isso sem entrar num juízo de valor. Por causa desta pesquisa, as emissoras de tevê e a mídia como um todo começou a investir mais nessa linha, que ganhou muita força. Isso fez surgir novas gerações e duplas de mulheres no sertanejo. Se antigamente, a mpb era importante, como foi o rock nos anos 1980, hoje o funk e o sertanejo são importantes. Isso do ponto de vista do mercado.
Como analisa isso?
Costumo dizer que o funk e a música sertaneja estão abaixo da minha linha de compreensão. Mas esta é a pretensão narcisista do crítico. Não consigo valorar, estabelecer valores estáticos para isso. Consigo compreender, me render ao fato de que é a música dominante. Acho que é uma música de qualidade duvidosa. Principalmente o funk, que é uma música de qualidade ruim, mas que tem uma ligação muito forte com o público. A música sertaneja em geral é muito superficial, é a balada, são os rodeios, virou namoro, sexo, consumo, bebida e ostentação. São valores muito efêmeros. Pra mim, o funk ostentação é repugnante. O proibidão que a gente é obrigado a ouvir nos carros com com som alto é deprimente. Como diria Adorno, é a decadência do gosto. Antigamente era Chico, Caetano, Gil, Milton, grandes caras, grande poetas e músicos que tinham grande impacto no público. Hoje são estas modinhas, que também acontecem em escala mundial com o funk, o pop eletrônico, o k-pop. São coisas dessa nova ordem do digital, essa variedade de idiotices.
Onde há resistência, fôlego novo, nesse panorama?
Se é que a gente pode chamar de resistência, ela se encontra nos nichos de música que são relevantes e fazem um trabalho para um público específico. Tem um lado da música brasileira, do rap, que é relevante. Hoje o rap é um dos métodos usados pelo funk, pelo pop. Sempre vai ter inteligência na música, só que não inteligência de massa. Não vai ter massa crítica.
Nos anos 1990, você fez um texto na Folha de S.Paulo em que dizia que “Marisas as montes não chegam ao Calcanhoto de Gal Costa”. Como vê o constante surgimento de cantoras na mpb?
Elas estão sempre aparecendo. Mas não como força cultural. No sertanejo, tem essas duplas de mulheres, que eu acho um horror. As canoras de mpb nunca decepcionaram. Têm uma linhagem que remonta a Carmem Miranda. É quase um século de cantoras. Quando e disse isso “Marisas aos monte...” e comparei de forma irônica com Gal, que faz um trabalho importante e de uma resistência grande até hoje, quis dizer que, embora fossem competentes, não superavam a Gal como intérpretes. Mas, como compositora, sim, fizeram e fazem projetos bons até hoje. Hoje elas são as matronas da música popular. E a Marisa Monte segue influenciando uma geração de novas cantoras. Atualmente tem a Gabi Amarantos, que nos trouxe a guitarrada, o tecnobrega, que acho bom. Algumas cantoras são antenas, pegam tendências do Brasil. Como ela fez. Essas coisas são relevantes. E claro, a grande mídia se apropria disso, como foi com a Gabi. E tem esses programas como The Voice, que revelam talentos, que na verdade, em geral, acabam sendo efêmeros. Mas a Roberta Sá, que acho boa, tem uma importância grande na cena contemporânea da música brasileira, surgiu num desses concursos da Globo, o Fama. Esses concursos acabam revelando alguns talentos. E hoje, a indústria da música, se reorganizou completamente, se voltando para os realities shows e nos streamings. E isso é bom. Hoje o público pode escolher pois tem muita informação. E esta informação vem de onde? De um jornalismo cultural de qualidade, dos conteúdos de qualidade produzidos pelo jornalismo e pela crítica, pela opinião especializada. Nisso tudo, não perdemos nada. Só ganhamos. Mas isso fragmentou a nossa vida.
E a cultura de Caxias, do Sul?
Saí em 1982, mas sempre voltei para Caxias, porém, infelizmente, não consigo acompanhar muito o movimento daqui. Mas acredito que cultura é comunidade. A cultura do Rio Grande do Sul está em decadência. Mas isso não é isolado do resto do país. Em São Paulo, no Rio, também há decadência, Por aqui, parece que as coisas não têm continuidade. Aqui não é especialmente decadente, tudo é decadente. No Rio Grande, há um problema de identidade, uma crise de identidade. A ideia do gaúcho heroico, que faz tudo, que é o melhor, o alfa boy, foi algo criado, construído pelo Estado e instituições que cultivam o tradicionalismo. E isso foi assimilado pela mídia, que crio essa imagem, esse mito, que não corresponde à realidade. O que a gente vive aqui no Sul é uma depressão grande. Tinha grandes editoras, não tem mais, por exemplo. É um reflexo do desmazelo do Brasil. A cultura é reflexo da decadência econômica do Brasil. A gente não está vivendo nada que tenha importância como já teve. É uma crise muito forte. Espero que isso se supere. Não vejo a luz no fim do túnel, mas acredito que ela vá aparecer numa hora dessas.