"Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”. A frase é de Paulo Freire, educador que dá nome à escola estadual instalada dentro do Centro de Atendimento Sócio-Educativo (Case), em Caxias do Sul. Curioso pensar que liberdade é justamente o que mais falta aos jovens que ali estudam. Com idades entre 14 e 21 anos, eles frequentam a sala de aula enquanto cumprem pena reclusos atrás das grades. Desde setembro, no entanto, cerca de 70 internos têm experimentado diferentes sentidos do “ser livre”, por meio do contato com a sétima arte. Como Paulo Freire previu, isso só foi possível por meio da comunhão de muitos. Mais especificamente das equipes da Varsóvia Comunicação e Cultura, Bete Souza Produções, Antro Filmes – que colocaram em prática a iniciativa Circuito de Cinema Inclusivo – e da escola Paulo Freire e Case – que abraçaram a ideia.
Leia mais:
Dupla sertaneja Victor Hugo e Samuel farão show nesta quinta, em Caxias
Espetáculo "Korvatunturi" será apresentado nesta quinta, em Gramado
Cantora Inês Rizzardo irá apresentar Show Especial de Natal nesta quinta, em Bento Gonçalves
Custeado via Financiarte, o projeto possibilitou 12 visitas dos organizadores do Circuito de Cinema Inclusivo ao Case. Nesses encontros, os alunos assistiram longas, curtas e clipes. Eles também participaram de oficinas de criação audiovisual, com noções gerais de filmagem e edição. O encerramento ocorreu na última terça-feira.
– Nós falamos sobre técnicas, mas também sobre as possíveis gambiarras que envolvem o cinema – contou Breno Dallas, da Antro Filmes.
– Ficamos sempre provocando eles, explicando que cinema não precisa ser contemplativo, que eles podem se expressar por meio dele – acrescentou Monique Rocco, outra integrante do time de oficineiros, completada com Saimon Fortuna.
Para colocar os usuários do Case dentro do processo de produção audiovisual, o projeto sugeriu que os garotos colorissem alguns fotogramas de um filme do Chaplin. Na terça, eles conferiram como a intervenção deles no longa clássico ficou (com uma edição unindo cada quadro). Os jovens também fizeram exercícios de câmera no qual eram os próprios personagens em cena. Essas imagens foram as que fizeram maior sucesso, com os garotos vibrando cada vez que apareciam na telona de cinema montada no espaço onde os internos do Case costumam receber visitas.
A supervisora da EJA da escola Paulo Freire, Sabrina Velho, explica que o Circuito de Cinema Inclusivo foi abraçado pelo projeto pedagógico da instituição. Neste semestre, cada disciplina procurou desenvolver atividades que lincassem algum aspecto visto nos filmes.
– Eles conheceram outras possibilidades, outros caminhos. Projetos assim ajudam a resgatar a identidade deles, para que se vejam como adolescentes – opinou Sabrina.
No encerramento do projeto, o clima de alegria entre os garotos parecia indicar que parte do objetivo estava cumprida. Criar, afinal, é também um jeito de ser livre:
– Fiquei pensando em fazer um filme quando sair daqui. Quero mudar de vida, seguir em frente, erguer a cabeça. A vida não vai parar, é só querer mudar – disse um jovem de 18 anos, participante do projeto, e que cumpre pena no Case por latrocínio.
Acreditar na possibilidade
– Muitas mensagens (do projeto) a gente pode levar para o futuro – disse um garoto de 17 anos, que cumpre pena sócio-educativa no Case por assalto a mão armada.
É impossível de mensurar se os planos de mudar de vida – discurso comum entre boa parte dos internos – realmente serão colocados em prática. Mas, assim como os jovens do Case, os organizadores do Circuito de Cinema Inclusivo e a equipe da escola estadual Paulo Freire preferem acreditar que sim.
– Ficou claro que numa continuação desse projeto é preciso profissionalizar mais eles, para que saiam daqui de fato sabendo mexer com vídeo, montagem, etc – comentou Robinson Cabral, idealizador da iniciativa ao lado de Bete Souza.
– Os filmes assistidos saíram um pouco daquela ideia da violência, continham mensagens mais positivas. Lançavam questões do meio deles, mas fazendo eles olharem para o próprio meio de forma diferente. Isso é importante porque eles vão voltar para este meio. A resposta que darão só o tempo que vai dizer, vão dar essa resposta no convívio social. Nossa ideia é que possam voltar de forma melhor, que possam se tornar resilientes – comentou Sabrina Velho, supervisora da EJA da escola Paulo Freire.
O Circuito de Cinema Inclusivo nasceu em 2015, quando a produtora audiovisual Bete Souza descobriu por acaso que havia uma escola dentro do Case. Ela conta que desde o início do projeto, a instituição foi receptiva à ideia de levar aos internos o contato com a produção audiovisual.
– Percebi que, dentro do ambiente da escola, eles (usuários do Case) são tratados como alunos – disse Bete.
Mesmo assim, as grades nas salas de aula não deixam quase ninguém esquecer que a escola está dentro de um ambiente de reclusão. Uma dupla de internos, inclusive, aproveita a presença da reportagem no Case para falar das más condições enfrentadas no local, citando desde comida azeda até violência verbal por parte dos agentes.
– Eles dão isso (referindo-se ao Circuito de Cinema Inclusivo) para tirar algo da gente depois – reclamou um interno.
Logo que o projeto de cinema começou a ser colocado em prática, em setembro, uma rebelião entre os internos deixou o clima ainda mais tenso. Mas, ao invés de cancelar o circuito, os diretores da escola e do Case resolveram reformular os encontros, separando os participantes em grupos menores.
– Nossa proposta é levar conhecimento para que eles se tornem seres humanos melhores. Os filmes fazem eles pensarem, mexem com a vida, com o sentimento – apontou a diretora da Escola Paulo Freire, Thais Enara Velho.
Há 28 anos trabalhando com a escola do Case, Thais fala com muito orgulho do trabalho educacional realizado dentro da instituição. O perfil inquieto da diretora faz com que ela busque alternativas positivas aos estudantes, mesmo em meio às particularidades que envolvem um ambiente de trabalho com menores infratores:
– Aqui é um desafio o tempo todo, mas faz a gente crescer, ir em busca. Gosto sempre de repetir que eles estão privados da liberdade, mas não da condição humana.