Natalia Borges Polesso sempre gostou de escrever. Publicou em alguns blogs, revistas, portais e antologias, e em 2013, aos 31 anos, lançou seu primeiro livro solo, Recortes para Álbum de Fotografia Sem Gente. Alguns meses depois, no final daquele mesmo ano, a jovem escritora radicada em Caxias recebia o troféu Açorianos na categoria contos pelo livro. Três anos e dois livros depois, agora Natalia vive outro momento especial: seu terceiro livro, Amora, também de contos, recebeu recentemente o Prêmio Ages e está concorrendo a mais um Açorianos, além de disputar o tradicional Prêmio Jabuti - no qual concorre com nomes consagrados como Luis Fernando Verissimo e Rubem Fonseca.
– Essas reverberações são muito preciosas – analisa a escritora, que está concluindo o doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRS) e também dá aulas particulares de inglês e de literatura, além de ministrar oficinas.
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Entre a torcida pelos prêmios e a correria de final de doutorado, Natalia ainda não tem planos definidos de lançamentos para o próximo ano. Porém dá pistas de que não vai ficar parada:
– Terminar um doutorado cansa. Mas meu caderninho tá cheio de anotações e ideias (risos), a gente sempre tem ideias. Enfim, planejei oficinas de escrita e de estudos literários para o verão, tanto aqui como em Porto Alegre. Estou trabalhando num projeto de literatura que não envolve um livro, mas envolve escrita, para ser realizado entre janeiro e março. E de resto estou pensando num romance que por enquanto é um monte de rabiscos, notas sem forma definida, o que é um bom começo.
Confira a entrevista concedida ao Pioneiro:
Como você avalia esse seu atual momento literário?
É um momento de alegria e satisfação. Comecei a pensar o Amora no fim de 2013, uma pequena ideia, eu tinha alguns escritos, lia para amigas e amigos, mas nada estava definido. Foram dois anos de muito trabalho, leituras e reescritas, até o Amora-livro. Sinto que fiz um bom trabalho, e estar entre os finalistas é certamente um reconhecimento disso. Fico feliz ainda de encontrar nomes como o da Renata Wolff novamente - fomos colegas de final no prêmio Ages -, é bom saber que a conquista, além de pessoal, é compartilhada com outra mulher talentosa.
O reconhecimento trazido por esse tipo de prêmio influencia na aceitação pelos leitores?
Creio que sim. O Amora está com uma boa aceitação em geral, mas os prêmios e as indicações influenciam, sim. Estava na banca da editora, na Feira do Livro em Porto Alegre, há uns dias, e vi algumas pessoas perguntando quais eram os livros finalistas do Açorianos, por exemplo. Essas reverberações são muito preciosas. A gente sabe que o mundo da literatura é meio restrito, fora das prateleiras dos best sellers, então, essa visibilidade que os prêmios carregam é ótima.
Chama a atenção que o Açorianos de Literatura 2016 tem vários nomes caxienses concorrendo. Isso significa que as letras locais estão chegando a um novo patamar?
Já tivemos muitos nomes concorrendo ao Açorianos. O Marco de Menezes, por exemplo, levou em 2010, o livro do ano por Fim das Coisas Velhas. Acho que estamos participando mais efetivamente dessas coisas e acho que circulamos melhor também. Assim, vamos abrindo caminhos mais amplos atrás de quem cortou o mato com facão (risos). Nos últimos anos, vejo uma cena literária crescente aqui. Isso pode ser atribuído um pouco ao tanto de grupos e eventos de literatura que se estabeleceram na cidade. A quantidade de finalistas do Açorianos pode, sim, ser um indicador desse movimento. Ter o Pedro Guerra e a Camila Gobbi ali como companheiros é uma alegria imensa! Especialmente a Camila, porque esses nossos livros, o Amora e o Escombros, foram meio que feitos juntos, com leitura mútua, conversa, discussões. Fomos juntas buscar nossos pareceres do Financiarte, até! Essa final pra mim é duplamente gratificante.
O que falta, ainda, na literatura produzida em solo gaúcho e, de modo particular, em Caxias do Sul?
Na produção, não sei julgar o que falta. No consumo, falta a gente se ler. Falta conhecer o trabalho de quem escreve nas margens, das produções artesanais, dos saraus, dos slams, da literatura de periferia, da literatura negra... Ah, acho que falta também crítica especializada, resenha. Compartilho o ponto de vista do Maikel de Abreu: em Caxias, especificamente, falta crítica. Falar sobre o trabalho em si. Não sobre o processo criativo, sobre o produto, o livro, a técnica, o tema, o enredo, a forma.
De que forma o doutorado que você está finalizando influenciou na sua escrita literária?
Meu doutorado é em Teoria da Literatura, estudo literatura e cidade. Então, minha pesquisa está bem distante da minha produção literária. No entanto, a PUCRS tem uma linha de Escrita Criativa, dentro da qual cursei algumas matérias, participei de grupos de estudos, e principalmente dialoguei muito com colegas e professores. A discussão sobre o que e como se produz literatura hoje certamente influenciou meu trabalho.
Amora tem sido descrito como um livro de temática lésbica; entretanto, você já declarou que, se fosse um livro de histórias de amor heterossexuais, esse ponto não seria destacado. A que você credita essa diferença de tratamento?
Há dois pontos: o primeiro diz respeito à marcação de um protagonismo lésbico. Os textos recriam relações de vários tipos, desde curiosidades infantis por figuras enigmáticas até amores na velhice, todos protagonizados por mulheres de diversas idades e contextos. O segundo diz respeito a um contraponto necessário: não são relações heteronormativas. Escrevi três livros, três livros que tratam, direta ou indiretamente, de relações lésbicas. Sim. Simplesmente porque minha experiência no mundo é uma experiência de mulher e de mulher lésbica, e eu ESCOLHI que escreveria sobre isso, porque eu acho importante que essa experiência seja vista, reconhecida e respeitada. É uma bandeira? Por que não? É uma escolha consciente? Sim. "Você quer escancarar o mundo lésbico?", foi a pergunta que recebi de um editor de uma revista à época do lançamento do Amora. Escancarar? Mundo lésbico? Parece que vivemos num universo à parte, que precisa ser escancarado pra ser visto. Respondi que a pergunta seria descabida se trocássemos "lésbico" por "hetero". De todo modo, é uma expressão necessária para mim, é parte da minha vida. É parte de como eu me relaciono com o mundo, com as pessoas, e eu não quero que esse fator seja apagado. Ele é importante. As relações não acontecem num ambiente amorfo, num fundo branco infinito, mas num espaço-tempo existente, que é o mundo, e o mundo tá cheio de, lésbicas, gays, trans, etc.
Aliás, a literatura escrita por mulheres ainda sofre preconceito? Se sim, de que forma ele se manifesta, e como pode ser combatido?
Não sei se "sofrer preconceito" é o termo correto, mas existe, sim, um tratamento diferente, de menos-valia, talvez. Pode se manifestar no discurso crítico, acadêmico, social, de consumo, de legitimação, nos convites para feiras, falas, eventos, nas indicações a prêmios, no corpo docente das universidades. Esse assunto é complexo. Vou pensar nessa pergunta como sugestão para o próximo Escritas Daqui (encontros que debatem a literatura produzida em Caxias do Sul e capitaneados por Natalia).
Isso leva a outra questão: o ativismo na literatura ainda é algo necessário? Até que ponto, e por quê?
O ativismo é necessário em todos os âmbitos em que problemas precisam ser resolvidos. Se há problemas na literatura, é preciso marcar posição. Essa posição pode ser ideológica, estética, temática, crítica, social enfim... há maneiras e maneiras de estar no mundo. E às vezes é preciso dizer "ei, estamos aqui, tão vendo?" A Chimamanda Ngozi Adichie tem uma fala ótima sobre isso: "The danger of a single story". A literatura é um exercício de alteridade e eu quero conhecer esses tantos outros que estão por aí.
Como escritora que também é professora, como você vê a educação hoje em relação à desconstrução de preconceitos?
Eu vejo a necessidade de mais diálogo aberto e especializado, com gente competente no assunto. Vejo a necessidade desses diálogos na escola também, especialmente para que as pessoas entendam melhor questões identidade de gênero, para que, quem sabe, num futuro próximo ninguém morra por ser gay.