A estreia da peça que comemoraria os 25 anos do grupo teatral gaúcho Falos & Stercus foi suspensa às vésperas de sua estreia, marcada para este sábado. Após uma vistoria marcada por polêmica entre as secretarias da Saúde e da Cultura, o Hospital Psiquiátrico São Pedro, local em que o Falos se acostumou a encenar suas peças e onde realizaria Mithos, foi interditado pelos bombeiros.
Destaque na capa do Segundo Caderno da edição desta sexta-feira de Zero Hora, Mithos mistura técnicas de teatro, dança e circo, com uso de rapel, manipulação de fogo e jogo com o público. O espetáculo teria sessões nos sábados, domingos e segundas, até 5 de dezembro – as sessões deste fim de semana já estão comprometidas e, de acordo com a Secretaria da Saúde, as seguintes também deverão ser canceladas. Os bombeiros deram prazo de uma semana para que a situação do hospital seja regularizada – o problema é fazer os responsáveis pelo hospital e os interessados em pôr a peça em cartaz se entenderem.
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– Houve um problema de comunicação entre a Secretaria da Cultura e a Secretaria da Saúde – diz Rafael Venturella, capitão do Corpo de Bombeiros de Porto Alegre, que explica: – Tanto o evento temporário não preenche os requisitos, quanto o prédio como um todo não tem o plano de prevenção contra incêndios (PPCI).
A vistoria dos bombeiros foi feita com acompanhamento de Luiz Carlos Pinto Sobrinho, diretor responsável pelo Hospital Psiquiátrico São Pedro, que teria assinado o documento proibindo o grupo de realizar a peça. No entanto, um documento obtido pelo diretor do grupo teatral, Marcelo Respoli, dá conta de que os pavilhões 5 e 6 do prédio são de responsabilidade da Secretaria da Cultura, o que tornaria inócuo – e ilegal – o posicionamento da Saúde (veja a cópia do documento ao fim da matéria).
Por meio de seu diretor-geral, Francisco Bernd, a Secretaria da Saúde afirma que os laudos técnicos inviabilizam não só a realização da peça, mas a ocupação do hospital como um todo – inclusive colocando em risco atores e espectadores. Há documentos datados de 2008, 2009 e 2015 afirmando que "o prédio não apresenta condições de ocupação" e recomendando a desocupação e reforma de todos os espaços. Além disso, o contrato entre Saúde e Cultura que cede os pavilhões 5 a 6 à segunda pasta prevê rescisão caso haja notificação de qualquer um dos lados – o que ocorreu em 10 de novembro de 2015. (Confira todos os documentos neste link.)
– Há uma disputa entre a Cultura e a Saúde pela administração do espaço – diz Respoli, o diretor do Falos, que ainda pretende resolver a situação a tempo de realizar a temporada: – Nós sempre tivemos autorização da Cultura, mas a Saúde é contra a nossa ocupação, quer retirar os grupos de lá. Me sinto triste como cidadão e como artista, pela falta de respeito com que foi tratado o nosso trabalho, que é reconhecido internacionalmente e tem um valor imaterial para a cultura do nosso Estado.
Mithos se passa, em grande parte, nas paredes e superfícies dos prédios dos pavilhões 5 e 6. Há cordas, cabos e roldanas presas nas construções – inclusive momentos em que os atores se penduram entre as duas edificações. Para a Saúde, trata-se de um risco iminente para todos. Há relatos de pelo menos um acidente envolvendo atores durante os ensaios.
– É uma peça bonita, mas imagina o risco – diz Bernd, que ressalta: – Com todos esses laudos e pareceres recomendando interditar e alertando sobre os perigos, é arriscadíssimo. Imagina que um desses cabos se rompa, uma das roldanas ceda, a parede se despedace, algum ator caia lá de cima. Quem é o responsável?
Bernd diz que o quiprocó vem desde 2008, quando o estado precário da construção começou a preocupar os peritos. Em 2009, o prédio começou a ser desocupado e, dois anos depois, um laudo da Secretaria de Obras reforçou a recomendação de não utilizar o espaço. Já em 2015 um novo laudo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado teria confirmado a situação. Apesar dos documentos, o grupo teatral anunciou a peça três semanas atrás, o que fez a Saúde agir.
O diretor-geral refuta ainda a teoria de que a desocupação seria o primeiro passa para a privatização do espaço. Segundo ele, não só não há intenção de vender o Hospital São Pedro, como há planos de recuperá-lo. Assim que reformado, no entanto, o prédio não deve mais receber espetáculos culturais, mas ser utilizado exclusivamente para a saúde:
– Esse espetáculo não será realizado nem hoje, nem semana que vem, nem ano que vem. Eles não vão se apresentar mais no São Pedro – afirma – Nossa intenção é recuperar esse espaço e utilizá-lo para a saúde. Isso não inclui peças.
Ao fim da vistoria, além dos pavilhões utilizados pelo grupo, o restante do hospital também foi interditado – situação que atinge também os cerca de 170 internos do prédio. O episódio, além de tudo, chegou à polícia: durante a vistoria, Frederico Respoli, filho de Marcelo, gravava a ação dos bombeiros e as discussões entre o grupo, os agentes e o diretor do hospital Luiz Carlos Pinto Sobrinho. Em determinado momento da gravação, Respoli se aproxima de Sobrinho, que aparenta já estar irritado, e é atingido por um soco, que derruba a câmera no chão. O fato gerou um boletim de ocorrência (veja o vídeo do momento da agressão e a cópia do B.O. abaixo).
Victor Hugo, secretário da Cultura do Estado, tenta agir como um mediador da escaramuça. Desde segunda-feira, o secretário mantém contato com a Saúde, numa tentativa de flexibilizar as posições da pasta. Promoveu uma reunião com o grupo teatral na manhã desta sexta, para planejar ações, e acionou a Saúde para uma tentativa de solução:
– Respeitamos a posição de todos os órgãos do governo, mas, se todos os lados que sentam à mesa colocam entraves e não mostram vontade conjunta de superá-los, a situação não vai mudar. Continuo pedindo que haja flexibilização das posições da Secretaria da Saúde e da direção do hospital – diz o secretário, que garante querer resolver a situação o mais rápido possível: – Se dependesse da ponta da minha caneta, o problema já estaria resolvido.
Agora, o Falos & Stercus tenta convencer os responsáveis de que o local tem tudo que é necessário para a realização de Mithos. Caso não consiga, o diretor do grupo cogita ir atrás do PPCI ou, em última circunstância, buscar outro local para o espetáculo.