Um domingo não igual a outro qualquer, mas de eleições. Lisboa amanhecera, como de costume, adoravelmente ensolarada. Principiava o outono e ela ainda conservava resíduos primaveris. Vestia-se festiva, com suas cores e flores. Desde o ajardinado Parque Eduardo VII até as margens do Tejo rescendia um perfume tipicamente lisboeta. A cidade me envolvia poeticamente. De algum recanto, talvez da Alfama, sons musicais reverberavam as lamúrias dos fados. Ao longo do arvoredo da Avenida da Liberdade as últimas cigarras despediam-se dos dias calorentos. Sendo eu um íntimo da cidade, caminhando solitariamente, resolvi tomar uma viela, evitando a efervescência do Rossio. Flanei entre o lirismo do Chiado e o pitoresco Largo dos Ratos. Singularmente, deixava-me embebedar pelos encantos antigos dessa tão bela quão singela metrópole.
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Pouco depois de dobrar a esquina, uma veneranda senhora interrompeu de súbito a minha marcha. Ela também estava sozinha e meio desnorteada. Parou para me perguntar se, por acaso, eu sabia o local de sua sessão eleitoral. Acontece que eu sabia, sim. Coincidira que recém eu passara pelo prédio procurado. Só podia ser ali. Senti um enorme orgulho dentro de mim ao lhe indicar o atalho. Eu estava sedento para ir às urnas e raivoso, porque em meu país tinham nos surrupiado o sagrado direito do sufrágio. Corriam os anos de chumbo, de silêncio e de torturas no Brasil.
Já não era mais o caso de Portugal. Há pouquíssimo tempo, a obtusa ditadura de Salazar tinha sido destroçada. Os portugueses babavam a avidez de poder votar. Pareciam cães famintos prontos para devorar a abundante e providencial ração. E a velha dama suspirava a sua excitação libertária. Receio que ela jamais tivesse feito isso. Daí, a sua voracidade democrática. De minha parte, me comovi com aquele gesto magnânimo. Eu que já vivenciara a sisudez da Lisboa de outras eras, então untada pela austeridade e o recato. Retraída, não passava duma moça tímida que se ocultava para não expor a própria formosura. Dessa vez, porém, a luminosa manhã dominical desvendara a boniteza da rapariga reprimida, pronta a se desnudar sem ressaibos de pudor, consciente de que quem sabe a hora não espera acontecer. O que, aliás, eles cantaram na Revolução dos Cravos.
De peito aberto eu me atrevi a aconselhar à vetusta cidadã alfacinha: "Vá votar, minha amiga, a senhora é uma sortuda, faça a sua escolha com alegria e fervor". E ela seguiu o rumo do seu próprio coração. Longe de minha pátria eu agia como um exilado saudosista. Com inegável pitada de inveja, ainda me lembro do amável e casual encontro. O que me obriga a parodiar o iluminado poeta Fernando Pessoa: votar é preciso! Assim como a gente se lambuza com chocolate...