A brincadeira preferida de Domingas Colombo Giacomin, quando criança, era dar aula às árvores do quintal, nos fundos da casa da família. Anos mais tarde, já em Caxias do Sul, aquele ensaio da infância vivida no município de Anta Gorda virou realidade, com a diferença de que, dessa feita, os alunos eram de verdade, e, em vez de ensinar, Domingas encantava-os com histórias. Estava descoberta sua vocação, a de trabalhar em bibliotecas, e os 40 anos dessa história de amor aos livros ganharam suas próprias páginas na autobiografia Abrindo Portas (Quatrilho Editorial, 192págs., R$ 34,90), lançada no último sábado.
– Era um sonho meu colocar no papel as memórias da minha vida profissional. Eu não saberia viver sem o livro. Se tivesse de recomeçar amanhã, começaria de novo trabalhando com o livro – garante Domingas, 62 anos, especialista em Educação Infantil e atuante em bibliotecas desde os 22.
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Quatro décadas de incentivo à leitura não são pouca coisa: milhares de alunos passaram pelas suas contações de histórias, seguiram suas indicações de livros e, graças a Domingas, entraram em contato com mais de 80 escritores de todo o Brasil. Pioneira em promover encontros de autores e alunos – hoje um hábito comum mas que na época parecia algo distante –, ela até mesmo tem seu projeto Encontro do Escritor com o Aluno registrado na Biblioteca Nacional.
Domingas começou a carreira no colégio La Salle Carmo, onde atuou por 18 anos, passou pelo Leonardo Da Vinci, Dante Alighieri e Mutirão. Em 2012, foi homenageada na 28ª Feira do Livro de Caxias do Sul, e em maio passado recebeu o título de Cidadã Caxiense. Na Biblioteca Luis Fernando Verissimo, no colégio Mutirão, onde atua, essa apaixonada pela literatura conversou com o Pioneiro sobre sua trajetória de incentivo à leitura. Confira:
Quais são as tuas primeiras memórias de literatura?
Monteiro Lobato. E eu tive a graça de estudar num colégio em que uma professora nos fez ler Machado de Assis, mas também pesquisar as roupas da época. Você já imaginou, nós passeando pela cidade com aquelas sombrinhas, aquelas rendas, aqueles chapéus? Ela conseguiu colocar em mim amor pelos livros. Eu tive bons professores, e tive uma mãe maravilhosa que me contava histórias da Bíblia. Atrás da minha casa, tinha muitas árvores, e eu dava aula para as árvores, elas eram meus alunos. Diziam para a minha mãe, 'A Mingas é louca', e ela respondia, 'Não, ela vai trabalhar em educação'. Eu era uma criança, e uma adolescente feliz. Graças a Deus, morei numa casa com livros e com árvores.
Num mundo tão tecnológico, o livro ainda tem vez?
Ouço de algumas pessoas que agora não precisa mais comprar livro, é só baixar da internet. Eu fico triste de ouvir isso. Na minha opinião, o livro não vai desaparecer. O livro é bom tocar, abraçar, cheirar, dormir abraçadinho, sublinhar um verso, uma palavra. Uma vez eu perguntei para o Moacyr Scliar se era burrice às vezes ficar só uma palavra de um livro, e ele respondeu, "Não, se ficar uma palavra, ficou muita coisa".
A poesia muitas vezes é vista como o patinho feio da literatura. O que você faz para os alunos gostarem de poesia?
Veja bem, o adulto é que diz que não gosta de poesia. E não gosta porque não lê poesia. As crianças amam! Eu faço oficina de poesia, e eles amam. Nós cantamos, declamamos. Os adolescentes gostam muito de poesia, eles desenham, encenam, musicam, dançam a poesia... Não é que eles não gostam, não é oferecido a eles. E eu amo poesia, sempre que eu coloco para criança, para o pré-adolescente, o adolescente, ele gosta também.
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Como surgiu o Encontro do Escritor com o Aluno?
Eu fui pioneira em Caxias, nos anos 1970, em trazer escritor. Eu via os alunos lendo uma obra e pensava, "por que não trazer o escritor para falar com eles?" Na época o escritor era uma coisa distante, parecia que ninguém podia falar com ele, e o escritor é uma pessoa normal, como nós. Então resolvi criar um projeto, que está registrado na Biblioteca Nacional. A primeira escritora foi a Maria Dinorah Luz do Prado, até hoje foram mais de 80. Também fui pioneira em fazer feiras do livro antes dos livros na praça. Em Caxias nós só tínhamos duas livrarias, a Sulina e a Rossi. E o livreiro Antoninho Rossi me deu muito apoio, nós trazíamos escritores para a escola e depois levávamos para a livraria, para a comunidade. A Maria Dinorah chegou a fazer bolhas (nos dedos) de tanto que ela autografou.
Hoje é comum ver escritor na escola, mas como foi para trazer os primeiros escritores?
Quem me ajudou no início foi o seu Antoninho, as editoras, e com o passar do tempo, divulgadores que visitam as escolas. Mas agora eu não preciso nem mais da livraria, nem mais da editora, porque o escritor me dá o telefone da casa dele, então eu entro em contato diretamente com ele. Tanto é que o Ziraldo veio quatro vezes a Caxias. O Rubem Alves só ia nas escolas e universidades para falar com educadores; eu fui a primeira pessoa que conseguiu colocá-lo em frente a uma criança, em frente a um pré-adolescente.
E quais outros escritores eram um sonho da Domingas leitora conhecer? Quais desses conseguiu trazer, e quais não?
Eu lia a Maria Dinorah, foi um sonho (ela ir à escola). O Mario Quintana eu não consegui trazer, ele disse "Domingas, eu não vou". Eu perguntei por que e ele respondeu "Porque um fusca de Caxias me atropelou". Eu disse, "Mario, podia ser só a placa", mas ele não veio. E o Jorge Amado também não pude trazer, porque já tinha morrido. Outro que eu queria conhecer, lia muito, era o Erico (Verissimo), que já era falecido, mas realizei o sonho de conhecer sua casa por meio do seu filho, Luis Fernando Verissimo.
Aliás, foi você que deu o nome de Luis Fernando Verissimo para a biblioteca do Mutirão?
Sim. Eu dei esse nome em 1994, ainda no (colégio) Leonardo Da Vinci (que depois deu lugar ao Dante Alighieri e, depois, ao Mutirão). Eu fui criticada, diziam "onde já seu viu, colocar o nome de uma pessoa viva?". E eu respondia que acho preciso valorizar uma pessoa em vida. Para mim, ele é o papa das crônicas, um escritor extremamente tímido, mas escreve divinamente, como ninguém. E na época ele chorou e disse assim, "Que bacana! Do meu pai, só lembraram (de homenagear) quando ele morreu". Então toda vez que eu convido, ele vem (conversar com os alunos), já veio nove vezes. Fizemos um busto dele, e eu tive a felicidade de conhecer a dona Mafalda (mulher de Erico e mãe de Luis Fernando), fui na casa dele, a casa que era do Erico, tive esse privilégio.
O que você lê?
Eu leio muita literatura infantil, porque eu preciso saber o que está sendo lançado. Faço contação de histórias e não se pode mais contar para uma criança histórias que não sejam literatura. As pessoas confundem hora do conto com hora didática, não pode ser. A hora da literatura, a hora do conto, tem de ser uma hora prazerosa, que eles gostem, não tem de cobrar nada. Ouço muito "estou explicando sobre planetas, tu tem uma história sobre planetas?". Isso não é literatura. Isso é didática, eu posso fazer na sala de aula, na biblioteca não. Literatura não tem de te ensinar nada. Ela tem de te acrescentar, como pessoa. Hora do conto tem de ser lúdica, prazerosa, faço eles sonharem, imaginarem, viajarem pelo mundo da imaginação. Trago comigo uma frase, há 40 anos, que "ler é viajar sem pagar passagem". O que eu quero dizer com isso? Se eu estou lendo uma crônica sobre os cafés de Paris, com riqueza de detalhes, por exemplo, eu chego até Paris.
E quanto tu está no teu tempo livre, o que tu gostas de ler?
Jorge Luis Borges, gosto muito. Guimarães Rosa. E eu ganho muito livro, então leio tudo o que me cair nas mãos. Escritores me mandam muito lançamentos, mandam para minha casa. E eu compro muito livro, faço um estrago quando entro na livraria (risos). Na minha casa tenho livro na área de serviço, na sala, no quarto... Gosto de reler, porque depende do nosso estado psicológico, emocional, se estou triste, se estou alegre, eu vou ter uma interpretação diferente.
Nesses 40 anos, devem ter passado muitos alunos pela tua biblioteca...
Milhares. A segunda geração está passando por mim. Os pais passaram por mim, e agora seus filhos. Tenho mais de 40 alunos agora que os pais passaram por mim. Eu fico emocionada quando esses pais entram na biblioteca e dizem "Tu estás aqui! Eu sou leitor por tua causa, eu ainda lembro de tuas histórias!". Se eles lembram, é sinal que eu marquei. Eu amo o que eu faço.
E qual o papel de quem trabalha em biblioteca hoje?
Quem trabalha em biblioteca é um agente social, tem uma grande responsabilidade. A biblioteca é a alma da escola. Antigamente, lugar de castigo ou de prova atrasada era na biblioteca. E ninguém podia tocar no livro. Está errado! As minhas prateleiras são bagunçadas. Antigamente, a bibliotecária te entregava um livro e dizia que era para tua idade, hoje deixo eles procurarem o que querem ler. A criança tem de manusear, tocar, fazer bagunça. Claro que há os livros da moda, os mais vendidos. O que nós, educadores, temos de fazer? Não proibir, e sim deixar o aluno ler. Mas também temos de mostrar para ele: isso é moda, isso é literatura. Aos poucos, o aluno mesmo vai se dar conta e vir pedir indicações. São estágios da leitura. Esse é o nosso papel: eu peço o que eles gostam, e dentro disso eu indico um livro legal, de literatura, e assim eles se tornam leitores.
Como incentivar a leitura?
Tudo começa em casa, quando a mãe conta histórias para o bebê que está na barriga e depois para a criança dormir. Mas quando a criança e adolescente chegam na escola, nós, educadores, temos esse papel importante de indicar, incentivar. E de dar vida às aulas. Se eu digo para lerem porque ler é bom, porque vão saber escrever, entender outras matérias, formar vocabulário, porém não sou leitora, não adianta. Mas se eu começo minha aula lendo um verso, lendo uma poesia, lendo um pedacinho de um livro, deixo um gostinho de quero mais e eles vão procurar o livro. Não posso ensinar literatura se não sou leitora, e infelizmente tem profissionais que saem da universidade não leitores.
Como continua essa história de amor ao livro?
A minha razão de acordar todos os dias são os meus alunos daqui do Mutirão. Já estou aposentada, mas enquanto eu não perder o meu entusiasmo, eu não vou parar de trabalhar.