Já tem algum tempo que o funk passou a se mostrar um gênero musical para além do estigma das letras sexistas e machistas. O ritmo frenético que já enlouqueceu muito DJ gringo também vem sendo usado como plataforma para discursos libertários e urgentes. No Brasil, uma cena ganha fôlego com artistas que levantam questões LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros – em suas letras, ainda que mantendo a irreverência (com alguns palavrões, claro) do linguajar do funk. O paulista Felipe Cagnacci é um dos nomes que tem ganhado projeção nesse âmbito.
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Fazendo valer a marca social mais importante do gênero – dar voz às minorias –, o artista usa a alcunha de MC Queer para tratar de questões de gênero e levantar a bandeira do respeito. O termo queer, aliás, vem do termo genderqueer, que significa a pessoa que não se encaixa nas distinções de gênero convencionais.
O projeto musical de MC Queer começou neste ano, com o lançamento de um EP com produção musical de Maestro Billy (que fez história como DJ do Caldeirão do Huck). O trabalho é dividido em Lado A e Lado B para demarcar duas importantes linhas de ataque de MC Queer, A de ativismo e B de bixa. O primeiro single do EP, Fiscal, foi lançado em maio e chegou ao primeiro lugar no TOP 50 de músicas mais compartilhadas do serviço de streaming Spotify. O clipe da música tem mais de 240 mil visualizações no YouTube.
Pioneiro: Como você decidiu "criar" o Mc Queer? Em que contexto da tua vida ele nasce?
MC Queer: O MC Queer foi o recurso que eu encontrei pra soltar um grito de revolta que estava preso aqui dentro. Ele é resultado de anos de bullying, agressões e indignação com a iminência de uma nova corrente conservadora altamente nociva que estamos testemunhando. Não dava mais pra ficar calado. E eu queria que todo mundo me escutasse. Por isso escolhi a música como palanque para o ativismo, porque ela tem mais alcance. E por isso também eu escolhi o funk na música, porque ele tem mais capilaridade.
O funk é um dos gêneros mais marginalizados da música brasileira, como você lida com este rótulo?
Eu simplesmente rejeito a conotação negativa desse rótulo. A gente tende a interpretar aquilo que é marginalizado automaticamente como algo ruim, e esse é o ninho do preconceito. LGBTs são marginalizados também. Tudo que é diferente e foge ao "padrão" é marginalizado. E a marginalização leva necessariamente à inovação. Funk é uma mistura linda de uma batida marginalizada americana – que acabou ficando popular e chegando até aqui – com outras batidas também marginalizadas brasileiras, de gueto, do nosso sincretismo. O funk, além de irresistível, já tem legado em dar voz a minorias e hoje também virou algo super popular, fala com todas as classes, todos os gêneros, todas as idades.
Como dosar o humor e a malandragem típicos do funk com um discurso sério?Eu acho que o interessante é essa mistura mesmo. Eu tentei trazer o humor usando recursos como a ironia e deboche para as letras, que tornam a mensagem mais palatável. Teve uma pessoa que me escreveu pra falar sobre Fiscal e ela disse: "foi a primeira vez que eu quis me acabar de dançar e ao mesmo tempo chorar". Eu achei incrível ler essa mensagem, (risos) porque essa música eu fiz mesmo usando a linguagem do opressor, para servir como uma espécie de "cavalo de Troia". A música pode até seduzir pela batida frenética no primeiro momento, mas eventualmente alguém para e presta atenção na mensagem e de repente reconsidera algumas atitudes.
Que força você quer expressar com o grito de guerra "o fervo também é luta", presente no primeiro single?
"O fervo também é luta" é um sample na música de uma frase criada por um coletivo de São Paulo chamado Revolta da Lâmpada (em referência ao objeto utilizado para espancar um jovem gay, num ataque na Avenida Paulista em 2010). E eu pedi para eles a autorização de uso, porque para mim ela é mesmo um grito de guerra para qualquer corpo oprimido. Lutar por ser quem é não necessariamente implica uma manifestação, uma militância organizada. A atitude é luta. O que você veste ou não veste é luta. A simples existência e resistência ao padrão é luta.
Como seu trabalho tem sido recebido? Há críticas vindas de dentro do universo LGBT?
Eu diria que mais de 90% do que chega até mim é muito amor e apoio. O ódio, intolerância e as ameaças vêm evidentemente mais dos conservadores, que recebem de mim um tratamento tão doce quanto a letra de Fiscal. A crítica de dentro do universo LGBT pra mim sempre será legítima, mesmo que eu não concorde totalmente com ela. A maior parte se deu por conta do uso da palavra "macho" na letra de Fiscal. Muita gente se apegou ao biologismo do significado e não levou em conta a ironia do discurso. Mas eu respeito, agradeço. Se eu tenho que explicar o que eu quis dizer é porque o erro foi meu em não emitir a mensagem corretamente.
O clipe de Fiscal tem uma estética muito sóbria, sem o uso de clichês visuais do mundo gay (apesar da purpurina). Que discurso está implícito nesta escolha?
A mensagem com a linguagem visual do clipe é: "caro opressor, você vêm com a lâmpada e a gente devolve com glitter". A gente basicamente buscou essa estética sóbria pra dar protagonismo para as pessoas que aparecem representando todas as letras do arco-íris LGBTQ e também para a manter a iconografia da lâmpada em evidência.
Que outros artistas do universo queer você acredita que todo mundo deveria conhecer?
Nossa, eu sou fã de muitos! Começando por Ney, que iniciou verdadeiramente tudo isso anos atrás e sustenta até hoje. Depois o Rico Dalasam maravilhoso, que é também precursor dessa nova cena. O som irresistível do Liniker e d'As Bahias e a Cozinha Mineira, o disco Mulher é um carinho na alma e elas têm um show maravilhoso. No funk são vários representantes: Lia Clark, MC Trans, MC Xuxu, Sapabonde, Mulher Pepita. E MC Linn da Quebrada e a JUP, que dão um recado muito mais refinado que o meu, usando todos os recursos na performance: a voz, o corpo. Mas minha maior obsessão musical é o Jaloo. Eu conheci ele num evento e, além do talento surreal, é também uma pessoa incrível.
Além dos já citados acima, quais são tuas principais referências musicais?
Eu adoro R&B e pop, mas minhas referências musicais foram construídas com muita brasilidade, desde a infância. Cresci ouvindo Ney, Maria Bethania, Elis, Caetano Veloso.
Quais são teus maiores anseios como artista?
Honestamente, eu espero muito que as pessoas curtam as músicas, o disco, os clipes, mas não tenho muitos anseios nesse campo porque tenho total noção de que eu não sou um artista excelente. Os que eu citei nas suas perguntas anteriores são infinitamente melhores. O projeto nasceu como ativismo usando música e não como música usando ativismo. Então eu me preocupo mais com o sucesso do ativismo pela causa, do que com o sucesso enquanto artista.