O bento-gonçalvense Dalcy Angelo Fontanive formou-se padre, mas acabou não exercendo as funções pastorais. As salas de aula o seduziram mais que os altares de igreja, e foi nesse ambiente onde passou a maior parte de sua trajetória profissional. Em Caxias do Sul, foi professor do Carmo e do São José, além de ter trabalhado no que gosta de chamar de “gestação” da Universidade de Caxias do Sul, por causa de sua ligação com as faculdades de Ciências Contábeis e Filosofia, embriões na fusão que criou a UCS há quase 50 anos.
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Fontanive deixou a cidade após perder o emprego em tempos de perseguição política, depois do obscuro ano de 1964. Experimentou a dureza do regime ditatorial e mudou-se para o Rio de Janeiro em busca de novos rumos. Foi na Cidade Maravilhosa que teve acesso à psicologia, paixão que colocou ao lado da filosofia e da docência. Aposentou-se há uma década como professor da Universidade Federal Fluminense, mas, aos 82 anos, ainda mantém um consultório de psicanálise em Ipanema. A mente sempre inquieta e a ânsia pela reflexão também o conduziram a um novo flerte, desta vez com a literatura.
– Quando eu era garoto, em Bento, depois de ir à missa, meu pai ficava batendo papo lá na praça e eu ia para a biblioteca pública para ler José de Alencar, Machado de Assis – conta.
Temas como a liberdade, a família e a imigração italiana ligam as histórias dos dois livros que lançou recentemente: Prisioneiro da Liberdade (2014) e Velhos Tempos, Novos Ventos (2015).
– Nós somos seres humanos porque somos livres, se não tivéssemos liberdade seríamos animais, seríamos só instinto. Minha grande preocupação não é em aceitar a liberdade humana, mas a questão do exercício da liberdade humana – comenta, sobre a trilogia que ficará completa com mais um título, que deve lançar este ano.
Pioneiro: Com base na sua experiência dentro das salas de aula, como o senhor avalia a evolução do ensino? No que ainda é preciso avançar?
Fontanive: Eu acho que o conhecimento hoje não é transmitido exclusivamente pela escola. Hoje existem meios mais eficazes e mais cômodos. Por isso acho que a estrutura escolar tem que mudar de finalidade. Ela não é mais o centro de ensino, ela teria de adquirir dois tipos de funções. Acho que as duas grandes funções seriam, primeiro, sistematizar o conhecimento, porque recebemos informações de tudo quanto é lado, é preciso fazer uma certa organização na cabeça de quem aprende. A criança é bombardeada com conhecimento de toda a parte, aí você tem que organizar isso para pensar dentro de uma forma mais coerente. A segunda função da escola é ser um centro de análise crítica do conhecimento, de avaliação crítica do conhecimento. A gente escuta tanta coisa, tudo isso é verdade? Tudo está certo? Alguém tem que dizer para esses estudantes “isso tem fundamento”, “isso não tem”.
Temos cada vez mais pessoas acessando as universidades, mas essa análise crítica que o senhor cita, parece ainda estar muito longe da realidade dos bancos escolares?
As universidades, hoje, deveriam partir muito mais para a pesquisa do que propriamente para o ensino. É na pesquisa que você descobre as coisas, não só as coisas desconhecidas, mas as coisas destorcidas também.
Qual sua impressão sobre a juventude atual? O que chama atenção do senhor, positiva ou negativamente, nas gerações mais novas?
Acho que os jovens talvez sejam os maiores desnorteados da nossa sociedade. Eles estão muito perdidos, à procura de uma “verdade” que eles ainda não conseguiram alcançar. Nesse meu tempo de universidade federal, tinha uma linha de trabalho que era o estudo sobre drogas, tive vários projetos sobre isso, principalmente sobre prevenção, não acredito muito em cura do vício em drogas. O importante é fazer que o jovem não chegue às drogas.
A procura pelas drogas poderia ter relação com esse desnorteamento?
A grande causa está na própria organização familiar, que não está conseguindo dar conta de suas funções, e faz isso pressionada pelas necessidades. Esses pais, hoje, estão muito atarefados em ganhar o pão de cada dia e os filhos ficam sem aquele conselho, aquela presença, e se perdem. Os pais têm que acolher os filhos, porque se não alguém vai acolher.
O senhor vê uma juventude protagonista, engajada?
Acho que estão se definindo. Os movimentos estudantis ainda não sabem exatamente onde e como chegar, mas estão num processo de se movimentar. A pior situação é a situação de apatia, de indiferença, de que tudo está bem. Hoje, nossos jovens estão meio sem saber o que defender, mas estão sentindo. O jovem é facilmente sensível, é uma espécie de caixa de ressonância, onde as exigências e necessidades sociais batem e são ouvidas. Eu sou a favor de movimentos como as ocupações nas escolas, claro que no começo é sempre assim, meio desorganizado, atabalhoado, mas ainda assim cheio de muita vitalidade e energia.
O que é diferente entre a efervescência política brasileira nos anos 1960 e hoje?
Em 1964, os jovens tinham posições muito firmes, eles eram ideologizados, não era uma questão político-partidária, mas ideológica. Hoje nós estamos vivendo uma situação diferente, a posição é mais partidária. Acho que, embora na época houvesse posições muito radicais, não era um fanatismo como existe hoje de certos adeptos de um partido ou de outro. A gente tinha muita posição, tinha ideologia de uma vida mais comunitária, mais socializada. Hoje vejo que as questões estão mais divididas por partidos, é uma posição política contra outra posição política.
O que ficou marcado da época da ditadura?
Eu fui atingido diretamente, fui demitido e impedido de qualquer atividade, de dar aulas, fazer conferências. Durante dois anos fiquei no ostracismo. Daí para frente fui sempre acompanhado de perto, porque qualquer coisa que eu fazia era alertado “você não pode”. Quando fui para o Rio continuou também, fiz uma vez um concurso num hospital psiquiátrico, era concorrido, tinha duas vagas mas eu entrei. Meses depois fui dispensado porque veio uma ordem. A gente estava fichado. Na própria universidade tinha muito aqueles personagens que faziam uma espécie de função de detetive para ver o que você pregava, o que dizia. Depois foi diluindo aos poucos. Foi um período pesado mesmo, e não só para mim, para o país todo.
Tendo vivido tudo isso, o que o senhor sente quando assiste pessoas pedindo a volta da ditadura?
São pessoas ingênuas ou iludidas. Eles não sabem o que é um regime de ditadura. Tem muita gente, amigos, colegas, conhecidos meus que, na época, sumiram. Sumiram como se some uma bolha de sabão, nunca mais se soube deles. Acho que essas pessoas não sabem o que estão exatamente querendo. A liberdade, apesar de ser difícil, é a maior entre as coisas que temos de perseguir. Descartes dizia “penso, logo existo”. Eu diria sou livre, por isso sou pessoa.
Qual importância da filosofia hoje?
Precisamos de filosofia e de psicologia. Filosofia para dar às pessoas valores autênticos e, sobretudo, uma hierarquia de valores. Na vida tudo é valor, mas você tem que saber escalonar o que vale mais. Ganhar dinheiro é um valor, agora, viver para ganhar dinheiro não deve ser nosso primeiro valor, e assim por diante. O importante é fazer com que as pessoas descubram o que é um valor, como ele deve ser conseguido e para quê a gente deve ter esse valor. E é importante as pessoas terem uma espécie de equilíbrio pessoal, que passa pela psicologia, saber se comportar diante da vida. Em vista de todo esse progresso, o ser humano está se tornando onipotente, ele acha que pode tudo. Essa sensação de onipotência pode inflar o próprio ego e hoje estamos caindo, vejo isso no meu consultório, num problema sério chamado de narcisismo. O ser humano vive em função de si mesmo, de suas coisas. Isso está criando uma sociedade pouco coesa, cimentada em si.
O narcisismo seria um dos maiores males da atualidade?
Acho que sim, é uma epidemia que está tomando conta da alma humana.
Como a fé pode contribuir com o ser humano?
Acreditar que existem as coisas que a religião afirma é uma questão pessoal e íntima. Agora, a religião como um fator que faz o sujeito viver de uma forma menos angustiada é um fator altamente positivo. A pessoa que tem uma crença religiosa suporta melhor a doença, a infelicidade, o infortúnio. A grande função da religião é fazer com que essa vida, que é um mistério para gente, tente te dar uma resposta. Se essa resposta é verdadeira ou não, isso é outra questão, mas ela pode aliviar a tua angústia perante àquela pergunta. A religião pode fazer com que a gente se sinta menos ameaçado com o desconhecido.