Ao ser convidado para conversar com o Pioneiro, Volnei Canônica, 42 anos, propõe:
– Num lugar com livros?
A sugestão não deixa dúvidas de que, apesar de o caxiense ter se exonerado semana passada do cargo de secretário executivo do Ministério da Cultura (MinC), sua paixão pela área – em especial, pela leitura – continua viva. E ter aberto mão de ser o número dois do MinC também não fez sua agenda diminuir: após uma rápida passagem por Caxias do Sul, para rever a família e os amigos, neste início de semana ele embarca para São Paulo para conversar sobre incentivo à leitura com investidores sociais privados, depois segue para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em que participa de diversas mesas sobre políticas de incentivo à leitura e criação de marcos na área. Em agosto, fala sobre as bibliotecas brasileiras em congresso do International Board on Books for Young People (IBBY), na Nova Zelândia, e na sequência voa para a Feira do Livro de Pequim.
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Os planos de Canônica também incluem a retomada do Centro de Leitura Quindim, em Caxias, projeto que precisou deixar de lado ao ir para o ministério e a construção de um espaço virtual que mobilize, mapeie e promova o diálogo entre todos que trabalham em prol do livro e da leitura. Além disso, pretende organizar um programa forte de leitura com refugiados.
Sobre sua saída do MinC, após apenas 22 dias como secretário executivo (a carta de exoneração foi entregue dia 21), Canônica diz ter certeza de que tomou a decisão certa. Entretanto, faz questão de não politizar sua saída do ministério, assim como também não politizou sua entrada, há cerca de um mês, após passar quase um ano à frente da Diretoria do Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca (DLLLB), órgão ligado ao ministério.
– Sou um técnico, sem partido. Procuro o diálogo com a gestão pública – diz, lembrando que de 2004 a 2010 atuou no mesmo segmento em Caxias do Sul, como servidor concursado, dentro dos governos de Gilberto Pepe Vargas (PT) e José Ivo Sartori (PMDB).
Confira trechos da entrevista:
Como foi sua passagem pelo MinC?
Minha atuação sempre foi pautada numa questão técnica e na visão de políticas públicas para a área. De políticas de Estado e não de governo, porque eu entendo que a pasta da cultura é essencial, apesar de em muitas gestões ela não ter essa valorização e não ser entendida como estratégica para a construção das políticas nacionais. E isso a gente passou recentemente com a extinção do ministério, em que o atual governo interino, quando entrou, não entendeu a pasta como prioritária e acabou transformando o ministério numa secretaria. Depois sua importância foi revista e o ministério voltou a ser ministério, e nessa retomada é que eu recebi o convite para a secretaria executiva. O aceite foi porque a cultura não pode ser moeda de troca, e independentemente de quem estiver no governo é preciso dialogar, principalmente quem é fazedor de cultura, assim como eu.
E o que levou você a desistir do cargo?
Na verdade não foi uma desistência. Eu resolvi sair por entender que naquele espaço eu não estava conseguindo contribuir com o que era necessário. Não tinha espaço para que eu pudesse contribuir com meu conhecimento e ampliar a minha ação. Foi o que me moveu a sair, mas desistência pela cultura, jamais, muito pelo contrário. Vou continuar trabalhando em prol da cultura, não sei fazer outra coisa.
Você falou, antes, de políticas de Estado e não de governo...
Eu só acredito na promoção de políticas públicas quando acontecer o diálogo entre a sociedade civil e o poder público. Enquanto for somente ações do poder público, são ações de governo; quando for só da sociedade, é da sociedade. E quando for política de Estado, esses dois sentam na mesa e constroem juntos. Essa tem sido a minha bandeira todos esses anos em que tenho trabalhado em prol da cultura, e por isso que não me achei nem um pouco desconfortável, mesmo com a mudança de governo, de estar no governo para dialogar, pois isso para mim não legitima nem ilegitima um governo. As negociações, as articulações partidárias, acontecem longe disso, e a gente não tem interferência. Nem quero ter interferência em relação a isso.
Quais foram suas principais realizações, nos dez meses na DLLLB e nessa rápida passagem como secretário executivo?
Evoluímos em relação ao Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, num diálogo com todos os sistemas estaduais para avançar realmente para uma rede entre todas as bibliotecas. E estávamos avançando num projeto bastante importante, espero que deem continuidade, para trazer a discussão sobre qual a biblioteca que se quer, uma biblioteca que atenda as necessidades da população, como espaço social, de escuta. Temos 6.112 bibliotecas no país, ela é o equipamento cultural mais presente no território, o que é diferente por exemplo dos museus, que a gente tem 3 mil e poucos. Então ela é de fundamental importância, além de dar acesso ao conhecimento, para dar escuta, entendimento, ser um espaço de acolher, onde outras atividades possam ser realizadas, como uma sala para ouvir as demandas da sociedade. Essa é uma biblioteca funcional, e era nesse sentido que estávamos dialogando para construir uma política estruturante e também garantir os recursos. Cabe à gestão pública dar diretrizes, garantir marcos legais e investimentos. Porque se for só diretrizes, é só uma carta de boas intenções. Tem de ter investimento, e investimento que não seja só em questões pontuais, tem de ser em questões estruturantes, e isso tem a ver com a formação de quem está atuando, com a questão de acessibilidade, que ainda algo muito embrionário. Também resgatamos os comitês do Proler, programa que estava praticamente inexistente via governo federal, embora ainda se mantivesse nos municípios. Deixei pensadas ações de fomento e de investimentos para a área.
Nesse momento de crise, a cultura ainda tem espaço?
Quando se fala por exemplo da Coreia do Sul, do Japão, a gente vê que a educação e a cultura foram fundamentais para a mudança econômica desses países. Porém ainda não conseguimos abrir os olhos e entender que, como se sabe hoje, cada R$ 1 investido na área da cultura retorna para o mercado de R$ 5 a R$ 7. Então a cultura não é gasto, é um grande investimento, e ela é fundamental, junto com a educação, para desenvolver a nossa sociedade. Mas todo governo trabalha com questões que eles dizem prioritárias, mas prioritárias no sentido do imediato. Não existe uma construção de algo que seja pensado e planejado para ser desenvolvido a longo prazo na área da cultura. A gente fica usando expressões como "Brasil, país do futuro", "as crianças são o futuro do país"... Parece que a gente está trabalhando com tudo que é distante sem pensar, hoje, para que esse distante seja construído muito logo. A gente fica jogando tudo para amanhã, para o futuro, mas o que a gente está fazendo de construção eficaz, sustentável, para que esse futuro chegue muito próximo? Houve, sim, nos últimos anos, um investimento maior em cultura e educação, mas hoje, por causa de uma crise econômica, são os primeiros que são cortados, e isso é uma visão restrita do que pode ser um país.
Foi o que ocorreu, inicialmente, com o MinC...
Quando o ministério foi extinto e se tornou secretaria, eu fiquei muito preocupado com que isso pudesse desencadear um efeito cascata. Já temos muitos Estados e municípios em que as secretarias de Educação e Cultura estão juntas. Eu já dialoguei com quase todos os municípios do Brasil e na minha experiência pública em vários Estados que elas estando na mesma pública não significa que elas conversem, a Educação e a Cultura. Isso não é real. Na verdade, ambas tem temas que dialogam, mas a Educação tem também temas específicos que precisa cuidar, e a Cultura tem temas específicos que precisa cuidar. Então, ao juntar tudo no mesmo bolo pensando que vai ter mais investimento, não dá certo. Cada uma tem suas necessidades específicas, e ambas precisam de grandes investimentos.
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E em Caxias do Sul, como você avalia o momento cultural?
Eu vejo que o movimento cultural em Caxias aumentou muito. Pessoas abrindo seus atelier, construindo espaços... Uma das coisas de quando eu estava na gestão pública na cidade, a gente dialogava por exemplo com o pessoal do teatro sobre a necessidade de ocupar espaços alternativos, e agora Caxias se abriu mais para isso. O que é bom porque a gente precisa pensar que o poder público tem de dar condições, diretrizes, investimentos, estrutura, mas tem uma série de coisas que não devem partir do poder público e sim da sociedade civil, para ter liberdade de ação.
O que ainda falta?
O que eu acho que ainda falta para Caxias é um movimento maior de diálogo entre os artistas de todas as áreas com a gestão pública. E nesse sentido, na construção do que eu chamo de política pública de Estado que seja estruturante. Vamos dizer, na área do livro e da leitura, na construção de um plano municipal, um grande mapeamento do que se está fazendo na área e qual as lacunas que a gente tem. Com isso o gestor público consegue olhar e dizer, bom, preciso rever a forma que estou fazendo e investir nessas lacunas e fazer de Caxias uma cidade mais leitora do que já é. Nesse sentido, pelo que eu tenho acompanhado, eu acho que falta esse diálogo, essa movimentação sistemática. O que a gente tem de entender é que a gestão é feita por todos, independentemente de qual governo é, se eu votei nele ou não, não posso esperar quatro anos. Todos os artistas precisam criar canais, fóruns de diálogo sistemático com o governo. Primeiro, para que sejam ouvidos, mas também para que possam ouvir quais são os projetos, as visões de quem está nessa gestão. Esse embate criativo é muito necessário para avanços de cenários. Não é só sentar para conversar quando tem algum problema.
Qual sua opinião sobre a mudança de local da Feira do Livro de Caxias?
A Feira do Livro costuma ser debatida só quando se aproxima sua realização. As decisões não são planejadas e construídas ao longo do tempo. Se existe a necessidade de sair da praça, colocada pela gestão pública, e se os livreiros acham que a praça garante a circulação das pessoas na feira do livro, então é preciso planejar e criar estratégias para garantir a circulação de pessoas em todos os espaços de Caxias do Sul. Não pode ficar concentrada só numa praça, no centro. Mas quais foram os caminhos construídos ao longo dos anos para que a literatura chegasse na praça dos trilhos (novo espaço da feira, junto à antiga Estação Férrea)? Tem de haver um movimento de todos que trabalham em prol da leitura para colocá-la em todos os espaços. Não pode acontecer só no centro. Agora, realmente, tirar de uma hora para outra, sem essa movimentação, faz com que todo mundo perca. A gestão pública perde, porque a intenção é dar acesso, e os livreiros perdem, porque não vai ter essa circulação. Não sei se isso foi construído, mas se a gente ficar só trabalhando a cultura em espaços no centro, ninguém cumpre seu papel de democratização do acesso.
Ninguém estaria totalmente com a razão, então?
O papel da promoção da leitura é de todos. Eu digo isso para o editor, o escritor, o ilustrador, o governo, as bibliotecas, o papel é de todos, do pai, da mãe. Então se estou realmente preocupado com a promoção da leitura, preciso fazer com que o despertar do gosto pelos livros chegue em todos os espaços. Então não teria por que não ir para outro espaço, e não teria por que, inclusive, de não ter ações diferentes em todos os espaços, ou seja, a feira continuar na praça central e ter outras coisas ou outra feira lá, durante o ano. Não se pode fazer apenas um grande evento de promoção da leitura durante o ano, temos de fazer muitos eventos. E há ações que ocorrem às vezes com impacto muito maior que as feiras do livro. Por isso acho que o que precisa em Caxias é sentar e discutir quais são as necessidades para a área e como a gente constrói juntos.
Entrevista: Volnei
"Cultura não pode ser moeda de troca", diz caxiense que atuou no MinC até semana passada
Ex-secretário executivo da pasta fala da sua passagem pelo ministério
Maristela Scheuer Deves
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