Fenômeno de público e crítica, o Teatro Mágico conquistou bem mais do que a admiração das plateias por onde passa. A trupe conseguiu fundir-se de tal maneira com os fãs, que, graças a eles, mantém-se em alta no cenário da música independente há 13 anos. Com estética própria – mix de música e performance –, foi um dos primeiros no Brasil a disponibilizar canções para download gratuito e acaba de obter R$ 392 mil no site de financiamento coletivo Catarse – estipulando um recorde de arrecadação na plataforma.Ao lançar o sexto CD, o solar Allehup, o músico Fernando Anitelli, cantor e idealizador do Teatro Mágico, mostra que dá, sim, para mexer em time que está ganhando. Cada álbum do Teatro Mágico tem formação, cenário e dinâmica distintos:
– Essa é uma coisa que aprendi no teatro, de quão importante é ser sensível nas relações de criação. Assim, a gente conhece outros músicos, outras performances. E trabalhar de maneira plural agrega de maneira vencedora para o projeto todo.
A seguir, ele fala sobre as dificuldades de produzir arte no Brasil e como a política está inserida no discurso da trupe. Confira.
Pioneiro: Como é fazer arte só com apoio dos fãs, quando todos dizem que é difícil viver de arte no Brasil?
Fernando Anitelli: Trabalhar com cultura no país é muito difícil. As políticas públicas voltadas para a cultura precisam melhorar, se fortalecer, e a gente precisa entender que o melhor parceiro para qualquer trabalho artístico é o público. Desde o início, a gente tem essa relação muito próxima com o público, seja presencialmente, nas apresentações, seja nas redes sociais, debatendo com ele, colocando nas músicas o que a gente sente necessidade. Então, o público sabe que a nossa arte independente depende de muita coisa, da distribuição, da relação com o próprio público... Essa história não é de ontem, esse público não surgiu do nada. Não ficamos três meses presos numa casa e depois que saímos havia alguém esperando por nós.É um trabalho de formiguinha...Na verdade, a gente sempre entende que o artista tem que descer do salto, descer do palco, conhecer o público, saber para quem ele está cantando. Precisa saber quem é ele dentro da cadeia produtiva da música. A música não é só a música, para que ela aconteça e chegue no ouvido de alguém – se ela não chegar, você não existe – é muito importante esse envolvimento em relação às redes, em trabalhar a música de maneira mais flexível, para que as pessoas possam ouvir, além de ter outros produtos e maneiras de divulgar a música. Onde você busca música hoje? No rádio, só tem um determinado número de artistas. Na tevê, só aqueles canais com programas específicos e uma determinada política sobre o que é bom ou não é bom. A gente entendeu que fazendo projetos junto com o público, se fortaleceria. A primeira vez que a gente fez o Catarse, foi nesse momento que o país está numa depressão econômica, em que ninguém contrata para absolutamente nada, que os agentes culturais estão com medo de investir uma grana, que a questão cultural está travada no país. Se o PIB baixou 5%, para nós baixou 40%. Chegamos à conclusão – e quem teve ideia foi o produtor Gustavo Anitelli, meu irmão – de que devíamos perguntar pro público o que eles achavam, o que queriam de retribuições (cada cota de patrocínio dá direito a algum benefício). Em cinco dias, o povo bateu a meta que era de 100 mil, ao final de 60 dias, tinham praticamente quadruplicado essa meta.
Isso serve como alento, de que é possível produzir arte também num ambiente desfavorável?
Exatamente. É possível, há um caminho, tem que ter um trabalho com personalidade, qualidade, orgânico, pessoal, que seja interessante, esteja próximo e provoque isso nas pessoas. Não é só pegar a música e jogar na rede. Você tem a possibilidade de trabalhar em outras esferas com a sua obra, com os desdobramentos da música. A gente acaba também conseguindo captar através de outras coisas, o próprio CD é um desses desdobramentos. De fato, para que isso possa cada vez mais ser oxigenado, ter força e ter combustível para caminhar, essa relação direta com o público precisa acontecer. Essa é uma das maneiras, o Teatro Mágico escolheu esse caminho. A gente fica feliz porque não deixa de gravar o que pensa, o que quer, fazer as críticas que a gente imagina, politicamente sejam elas como forem, e a gente traz para o debate o que é pertinente para o nosso dia a dia.
O que mudou na relação com o público nessa trajetória e o que é preciso fazer para se manter relevante?
É uma coisa subjetiva falarmos sobre fórmula ou segredo, mas é essencialmente sobre honrar o seu público e honrar a sua obra. Dessa maneira, quando você está envolvido com isso, faz de uma maneira mais sagrada. Quando eu subo no palco para falar o que eu falo, para fazer o que eu faço, faço com essa qualidade, com esse ímpeto. E cada material que a gente solta tem isso de provocar, a gente acabou de lançar um clipe Deixa Ser, que tem a ver com essa questão da inclusão de gênero, empoderamento da mulher, a liberdade, e a gente vai narrando, escrevendo o que está acontecendo com o nosso cotidiano, expressando nossas opiniões. A gente está atualizado em relação a isso, a gente busca fazer pesquisas sonoras, de grooves, de timbres, de ambiências...
E o fato de vocês terem virado um fenômeno afetou, de alguma maneira, o processo produtivo?
Isso só é uma p* duma responsabilidade que colocam na suas costas. Não somos o primeiro grupo a colocar música na internet, não somos o primeiro grupo a pintar a cara, não somos o primeiro grupo a usar figurino para subir no palco, nem a nossa música é de vanguarda. Mas a junção disso tudo, dentro de uma banda pop com essa estética, debatendo política, debatendo a música livre na prática, criando representatividade e transformação nas redes sociais, isso sim é diferente e inusitado. A gente vai fazer 13 anos em 13 de dezembro, já abrimos show do Dave Matthews, o SWU, já tivemos recordes em festivais, nas viradas culturais e até hoje a gente toca pouquíssimo em rádio, no cenário midiático da tevê. E é por que a gente quer? Não! Eu adoraria que minha música tocasse para cima e para baixo. Mas o caminho que a gente vem fazendo comporta outros lugares e faz com que possamos ocupar outros espaços. Mas quando você se torna uma referência, se você já vem caminhando, sabe que tem que ter o pé no chão, ter alteridade para conversar com os músicos. Para ser um grupo independente, você depende de muita gente, de muito resultado. Ser uma grande referência nesse universo da música pop independente é a responsabilidade de continuar com a perspectiva desse debate, da acessibilidade da cultura, da democratização dos meios midiáticos, além de trazer a responsabilidade de ter um trabalho bom, com letra e groove legais. Cada álbum, clipe, é uma discussão interna, a gente fica muito cuidadoso com isso.
Apesar das mudanças de formação e estilos, o Teatro Mágico tem forte inclinação política. Há alguma fronteira entre política e arte?
Sem dúvida alguma, essa é a maneira como o Teatro Mágico percebe as coisas. Tem gente que é talentosa e gosta de fazer trabalho para entreter. Tem música que toca e música que não te toca. Eu gosto daquela que seja capaz de transformar, provocar em mim alguma coisa. Tudo o que a gente faz é recombinar o que a gente já aprendeu, já criou. O Teatro Mágico faz uma arte politizada. Se você pegar uma letra, o que eu estou cantando? Sobre a primavera árabe, os movimentos campesinos, o ser humano no trabalho, a mídia... Até me espanto quando alguém me fala “Anitelli, você agora está se envolvendo com política?”. E eu digo “querido, acho que você nunca entendeu a minha música...”. Não sou partidário, sou a favor de determinadas pautas, e os partidos que trazem essas pautas são os que têm um viés mais de esquerda, mais humano, com a economia pensada mais no social. Nosso governo de esquerda não era de esquerda há um bom tempo. E a oposição à ele, pelo amor de Deus, não tem argumento algum, representatividade nenhuma e faz da violência, da truculência, da homofobia, do fascismo e do machismo a sua pauta. É imprescindível que nas apresentações do Teatro Mágico a gente vá falar de coisas assim, não tem como dissociar. A gente fala de política através de humor, de amor, de críticas mais pesadas, mas tudo isso com a poesia e o lúdico, que são nossas marcas.
E como é esse novo disco, ‘Allehup’?
Allehup é o grito ancestral do circense antes de entrar no palco, é esse “vambora, vamos pra cima”. Esse álbum vem logo depois do Grão do Corpo, que é mais introspectivo, mais denso, que foi gravado num momento sensível da política do Brasil, do levante popular, e sensível dentro da minha vida, quando meu irmão mais velho estava fazendo sua passagem e indo morar com o Papai do Céu. Isso fica impresso quando você vai gravar. Depois de dois anos, a gente compreende que tem que trazer nossos comentários e nossas ideias sonoras com outra paleta de cores, com outra alegria, com outra pressão, com outra festividade e positividade, que a nossa palavra dentro dessa luta seja pedagógica, que a música venha como uma luz, que a gente se purpurine mais e saiba bailar sem vergonha.