Uma motocicleta repousa no pátio em frente aos parreirais, na entrada da Casa de Pedra, em Caxias. A representação de uma sala de imigrantes europeus do século passado, no segundo ponto turístico mais visitado da cidade, conta com um objeto bem contemporâneo: um micro-ondas escondido sob uma toalha bordada. A mesa ampla, cercada por quadros e imagens de santos católicos de devoção, além de dimensionar o tamanho das famílias de antigamente, por causa da quantidade de lugares, serve como apoio para os monitores do museu realizarem as refeições - levadas de casa e aquecidas no equipamento. Paradoxalmente, o espaço exibe um cartaz proibindo o ingresso com comida ou bebida.
Doutora em História e professora da Universidade de Caxias do Sul, Luiza Iotti explica que, como o nome sugere, um museu ambiência deve manter o ambiente como foi proposto:
- Não pode haver intervenções, isso revela um desconhecimento da proposta do museu.
A coordenadora da Casa de Pedra, Ivânia Ermel, reconhece que as refeições não deveriam ser realizadas no interior da casa, mas diz não encontrar alternativas.
- Funcionamos das 9h às 17h, os monitores (quatro estagiários do curso de História) precisam ter um horário para lanche. Quando há sol, eles vão comer no pátio, mas nem sempre dá. E não dá para almoçar sempre em restaurantes, o jeito é trazer marmitas - explica, dizendo haver uma autorização para o uso da mesa centenária. - Normalmente, as pessoas não veem (a cena) - completa.
Relata, ainda, que o bebedouro fica no banheiro, uma construção anexa, e que a equipe precisa adaptar-se às circunstâncias.
- Somos humanos, procuramos fazer as refeições em horários que ninguém costuma vir aqui - diz Ivânia.
A diretora de museus da Secretaria Municipal da Cultura, Marta Slomp, contextualiza o problema:
- Temos seis espaços para cuidar e apenas nove servidores. Houve o decreto de contenção de despesas (com corte de horas-extras) e é claro que isso interfere na qualidade do que se está fazendo.
Reitera a fala de Ivânia e explica que os monitores "precisam se alimentar".
- Não é adequado. Mas pedimos para não comerem na frente dos visitantes, é complicado. Vivemos numa conjuntura onde tudo está difícil - diz.
A situação é emblemática, à medida em que também serve como metáfora sobre as dificuldades em se lidar com o patrimônio. Para o doutor em História Marcelo Caon, ela pode ser um reflexo do descaso da sociedade com o seu entorno. A política de patrimônio, normalmente imposta pelo Estado -" de cima para baixo" - dificultaria esse reconhecimento.
- Isso não é exclusivo de Caxias, é uma coisa do Ocidente - relativiza.
Para ele, seria mais fácil se houvesse ressonância entre os bens preservados e o dia a dia das pessoas.
- Podemos usar a era vintage como exemplo, de que se procura no passado algo que provoque emoção, porque o presente não representa. Esse é o paradoxo das fotos (da Casa de Pedra): aqui, é o passado que não representa - explica Caon, e vai além: - Um patrimônio congelado, sem relação com as pessoas, revela o comportamento social, a gestão patrimonial e até a panela na mesa da nonna no museu - afirma.
Área anexa seria solução
A arquiteta Sandra Barella, responsável pelo restauro do espaço nos anos 2000, costuma levar os alunos do curso de Arquitetura e Urbanismo da UCS até a Casa de Pedra, por considerá-la uma proposta de museu de vanguarda, e diz nunca ter visto nada "fora do normal". Mas, do ponto de vista espacial e arquitetônico, aponta o que seria uma solução.
- A tendência é o que foi feito com os sanitários na própria Casa de Pedra, de construir uma área de apoio anexa. Isso não era uma demanda na época da nossa intervenção, nos anos 2000 - ressalta.
Sandra avalia que as refeições deveriam ser realizadas fora da casa, para "manter as originalidades intactas" e não interferir no aspecto visual do ambiente. Cita o Museu do Pão, em Ilópolis, como exemplo de projeto de conservação do espaço, a fim de qualificar o objeto conservado. Fora a dimensão arquitetônica, acha pouco provável que o uso inadequado da mesa sirva para danificar o bem em si.
- Adaptações são aceitáveis, sem que agridam o ambiente. A própria iluminação é uma interferência contemporânea, e nem se imagina a Casa de Pedra à luz de velas. A luz é mais quente, amarelada, com equipamentos trabalhados a favor do ambiente - completa Sandra.
Marta Slomp revela que existe a intenção de construir um prédio anexo para abrigar a área administrativa da Casa de Pedra.
- Já conversamos sobre isso. Há a questão do cercamento do Monumento ao Imigrante, que temos projeto há mais de três anos. Também precisaríamos cercar o terreno da Casa de Pedra, mas há um prazo longo para tudo.
Marta destaca que apesar das dificuldades, os visitantes são bem recebidos, e o trabalho costuma ser elogiado pelos turistas.
- Precisamos ter um olhar sobre o todo, o contexto - diz.
Saiba mais
:: A Casa de Pedra era a residência do imigrante italiano Giuseppe Lucchese, no final do século 19, na então denominada 9ª Légua de Caxias
:: Foi adquirida e pertenceu a Jacob Brunetta de 1913 a 1946, quando se tornou propriedade de David Tomazzoni. Ao longo do tempo, em construções de madeira, outras atividades foram ali desenvolvidas como abatedouro de suínos, armazém e ferraria
:: Em 1974, véspera do centenário da imigração italiana no Estado, a prefeitura negociou com a família Tomazzoni, tornou-se proprietária da área e instalou o Museu Casa de Pedra
:: Ele foi inaugurado em 14 de fevereiro de 1975, durante a Festa da Uva
:: Na área externa há um parreiral lembrando a principal cultura agrícola dos imigrantes, ao lado de outras árvores e de um forno, confeccionado artesanalmente com tijolos e barro
:: Na cozinha estão um fogão rústico encravado na pedra, grandes panelas e utensílios para a confecção de alimentos, como a polenta
:: Na sala está a mesa com muitos lugares, apropriada à família numerosa, os quadros e imagens de santos católicos de devoção, os objetos do artesanato feminino
:: No andar superior está instalado o quarto com poucos e indispensáveis móveis