Nos fim dos anos 1960, mulheres queimaram sutiãs em nome da liberdade. Semana passada, decretos e polêmicas em torno do uso de shortinhos em escolas atualizaram questões sobre corpo, gênero e cultura. Por isso a filósofa Marcia Tiburi diz que este 8 de março, Dia Internacional da Mulher, pede mais do que flores. Impõe reflexões. Algumas delas estarão na palestra que ela fará nesta quinta-feira, às 19h30min, no hotel Intercity - ingressos gratuitos devem ser retirados na Rádio São Francisco (Rua General Sampaio 161 % 3220.9400). Outras estão nesta entrevista concedida ao Pioneiro por e-mail.
Pioneiro: Qual é o sentido de um 8 de março no mundo contemporâneo? É uma data para reflexão ou ação?
Marcia Tiburi: É uma data para tudo isso, tanto para pensar quanto para agir. Um data como essa foi criada com intenções políticas, mas foi transformada em um evento pseudo-econômico. Durante muito tempo o 8 de março foi amenizado por empresas privadas ou públicas e até por pessoas em geral que pensavam que se deveria agradar uma mulher com uma flor, um presente qualquer. Muitas mulheres pensavam que era isso, um momento para lembrar delas. Há ainda quem pense que deve homenagear uma mulher por sua natureza feminina ou coisa parecida. Mas de um modo geral, pelo menos no Brasil, cresce a consciência de que o 8 de março é uma memória politica da luta das mulheres por seus direitos. Hoje, por causa do avanço do feminismo, o 8 de março está social e politicamente mais importante do que era no passado.
Como vê a polêmica da proibição do uso de shortinhos em algumas escolas do Estado? Retrocesso, reacionarismo? Precisamos rever lutas sobre a autonomia sobre o corpo? Que sociedade faz emergir esses embates?
Que sociedade é essa onde o machismo cresce e aparece? Boa pergunta. É a sociedade do machismo estrutural, na qual se educa para o machismo. Escrevi um artigo sobre essa questão, as minhas sobrinhas que estudam em boas escolas de Porto Alegre e a minha enteada que estuda no Rio vivem a mesma experiência com o machismo dos meninos na escola, mas sobretudo com o machismo da escola, da instituição. É incrível como a escola tem o poder de errar nesse caso quando a questão é de gênero. É de lamentar. A instituição escolar, que teria o papel de esclarecer sobre questões conflituosas e ideológicas, proíbe que as meninas usem uma peça de roupa, ensinando que se escondam e sintam vergonha de seus corpos e que sintam culpa frente aos meninos. Ao mesmo tempo, os garotos, os meninos, ganham direito do preconceito com todo o rol de atitudes simbólica e fisicamente violentas que surgem daí.
Seu livro Como conversar com um fascista? é leitura pertinente para um 8 de março? Como homens, mulheres e todos podem se contrapor ao fascismo?
Há alguns capítulos feministas no livro. Um que fala sobre a cultura do assédio, outro que trabalha a questão do aborto, e outro ainda que trata da cultura do estupro. O machismo tem nexo direto com o fascismo. Ambos são formas de autoritarismo. Só que o machismo é muitas vezes tão sutil que é difícil desmascará-lo.
O que o tema da palestra - Mulheres, Poderes e Vida Contemporânea - sugere?
Vamos falar das relações entre mulheres e poderes. O poder ainda é um tabu na vida das mulheres. Refiro-me ao poder em geral, econômico, institucional, pessoal, mas sobretudo ao poder político. Hoje empresas esperam que haja mais mulheres nos cargos decisórios, assim como esperamos que haja mais mulheres nos cargos de governo. A intenção é democrática, paridade e equidade de participação. Por um lado, há o machismo impedindo, mas há também o problema das mulheres, do motivo pelo qual as mulheres não se veem nesses lugares e, quando se veem neles, porque são tão facilmente barradas ou proibidas de chegar neles.
Seu livro Filosofia machismos e feminismos sugere que a questão de gênero infere no pensamento e ações sociais?
Sem dúvida, filosofia sempre foi, historicamente, um assunto de homens. A misoginia faz parte da história da filosofia, das ciências em geral e das artes.
Como o feminino borrado, o transgênero e o movimento LGBTQ propõem outras formas de convívio no mundo?
O feminismo não é mais apenas uma defesa dos direitos das mulheres e já se libertou do conceito de natureza. Hoje, o feminismo não serve apenas para defender o sujeito "mulher", mas para defender todos os que são aviltados, alienados, violentados simbólica e fisicamente em nossa cultura. Daí a aliança do feminismo com a ecologia, com economias não violentas, com projetos de sociedade que defendam a diferença. Não apenas aquilo que mal ou bem chamamos de "excluídos", mas todos os que são vitimados por uma ordem econômica e social, política e simbólica a ser transformada. O feminismo atual trabalha de um modo geral com a luta e a questão racial e de classes. Não apenas com gênero e sexualidade. Aliás, já vimos que isso é uma armadilha.
Quem são a mulher e o homem contemporâneos? Como eles podem "ser felizes para sempre"?
O que possamos chamar de mulher e de homem contemporâneo, se existirem, já não podem ser vítimas do amor romântico que foi, historicamente, tão aprazível e vantajoso para os homens e fez tão mal às mulheres. Creio que para responder diretamente à sua pergunta, seja preciso pensar em outros gêneros, em ultrapassar o gênero, em ir na direção da singularidade de cada pessoa, independentemente de suas configurações de gênero que, aliás, vem ruindo. Mas como atualmente o reacionarismo, o autoritarismo e outras formas de violência estão em alta, e se ocupam de gritar asneiras em torno do tema de gênero, vamos ter que continuar a falar, e muito, sobre gênero.