O que resta daquele Morangos Mofados rabiscado que Ângela entregou na fila do Unimúsica, naquele verão de 1982, quando Nei Lisboa cantava "vai te embora, vai te embora prenda minha" no Bonfim que prometia um mundo e muito mais?
Um estranhamento, as pequenas coisas de um Caio F. que se abria como promessa, revelação, arrebatamento e alguma coisa mais que ainda sopra sempre que uma vareta de incenso se acende nestes 20 anos que se fecham hoje desde que ele se foi por causa da doença que disse ser o mal de um planeta egoísta, solitário e à deriva dos afetos.
Nesse período, Caio Fernando Abreu reapareceu flaneur do mundo e de inquietações Sob Sete Ondas Verdes Espumantes, o belo e vigoroso filme do caxiense Bruno Polidoro e de Cacá Nazario, que fazem cinema a partir da escrita do autor de mais de 20 títulos de contos, novelas, romances, textos para teatro e ensaios.
Na web, bombam os tumblrs Conselhos de Caio e Conselhos CFA, com milhares de usuários. Nas livrarias chegaram títulos como Caio Fernando Abreu - Cartas -, concebido por Ítalo Moriconi, e Para Sempre Teu, Caio F. , da amiga Paula Dip, que também fez o filme homônimo com o diretor Candé Salles. Organizado por Marcia Ivana de Lima e Silva e Leticia da Costa Chaplin, Poesias Nunca Publicadas de Caio Fernando Abreu, reúne pela primeira vez a poesia que rabiscava. São algumas veredas. Não todas.
Mas, de novo, o que resta daquelas frutas vermelhas em mofo, daquela ânsia pelo devir, dos mapas astrais favoráveis à luxúria ou à dieta macrô de arroz com algas, à angústia em meio aos arranha-céus paulistas riscadas pela sofreguidão, do dia em que Urano entrou em Escorpião? Reverbera a ânsia acomodada num saco de dormir em noites de squats londrinos quando a saudade de Nair e Záel e uma xícara de leite morno com mel (e girassóis?!) e afagos lhe devolveriam a vida, a dignidade e, de novo, a vontade de pegar a estrada. E o desejo de procurar Hilda na Casa do Sol , a casa do Menino Deus, as cartas e os conselhos, as ranhetices e as cobranças, a incomodação de, enfim, ser patrono já frágil na cidade que muito lhe olhou torto.
Resta a vida como arrebatamento, a literatura fractal como amálgama disso tudo. Resta um recorte possível do que os astros conjecturaram para que ele nunca deixasse de escrever cartas para além dos muros. Sobrevive este silêncio tateando a presença de uma literatura que ainda se impõe reveladora, pertinente e necessária.
Resta sua presença nas enquadraturas de textos sobre amor, paixões, dores, sexo, música, vírus, virulência, solidão, bobagens, baseados, ópio, voragem, devassidão, Clarice, Roro, gotas de Chanel 5, galinhas, perucas, Irenes, Jaciras.
E uma saudade de Ângela, aquela da iniciação. E um devir feito de antes, cheio de agora, e tão confiante no amor como redenção daqueles dois e de uma humanidade inteira.
Debates em Porto Alegre
Nesta quinta-feira, às 19h, o Santander Cultural, na Capital, exibe três curtas gaúchos baseados na obra do autor e um debate com Polidoro, Candé Salles, Guilherme de A. Prado, Luciano Alabarse e Tutti Gregianin. Na sexta-feira, às 19h, tem sessão comentada de Onde Andará Dulce Veiga, com Guilherme de Almeida Prado. Ingressos a R$ 10 ou R$ 5 (meia).