Não costumo pautar minhas leituras pelas listas de mais vendidos - aliás, normalmente fujo delas, para não me deixar influenciar, e só tempos depois leio o que lá estava, se a trama me interessar. Por isso, fiquei surpresa ao ver a lista divulgada na sexta-feira passada pelo site especializado Publishnews: as duas últimas dicas que dei, Joyland, de Stephen King, e A Garota no Trem, de Paula Hawkins, aparecem respectivamente em 11º e 4º lugar no ranking de ficção. E o livro que venho indicar hoje, Número Zero (Record, 208 páginas, R$ 35), de Umberto Eco, foi o campeão de vendas segundo essa lista.
O que mais chama minha atenção é o fato de que Umberto Eco foge do tradicional estereótipo de bestseller como leitura fácil - os livros do autor italiano, também linguista e semiólogo reconhecido internacionalmente, podem ser saborosos e instigantes, mas de fáceis ou simples eles não têm nada. Comprei Número Zero algumas semanas atrás, porque na minha época de faculdade fiquei encantada com a escrita de Eco e com as tramas cheias de camadas de O Nome da Rosa, O Pêndulo de Foucault e A Ilha do Dia Anterior.
Antes de entrar na história propriamente dita, é preciso explicar o título do livro. A expressão "número zero" se refere ao jornal, ou aos jornais, feitos antes de uma publicação estrear, ou seja, números de teste, também chamados de "piloto" na linguagem jornalística.
Na trama do italiano, um grupo de redatores vindos de experiências variadas (embora nenhum deles do jornalismo mais sério) para fazer, durante um ano, diversos "números zero" de uma nova publicação, que se chamará Amanhã - isso porque esse jornal não falaria do que aconteceu, mas do que irá acontecer, num exercício de previsão dos desdobramentos dos fatos já ocorridos.
A experiência do Amanhã, entretanto, é uma fachada para subornar possíveis inimigos do dono do jornal, mostrando-lhes, por meio dos pilotos, que seus segredos podem ser revelados. A equipe não sabe disso, é claro, e as reações às pautas sugeridas vão sendo diversas. Enquanto alguns embarcam com tudo na ideia, dando sugestões de matérias cada vez mais escabrosas, outros, como o narrador-protagonista Colonna, têm seus receios. A jovem idealista Maia é outra que se sente mal com a situação, mas como necessita do emprego, vai ficando.
Em meio ao grupo, destaca-se o paranoico Braggadocio, que começa a levantar teses cada vez mais malucas sobre conspirações, como a que envolveria o cadáver de Mussolini. Segundo ele, na verdade o Duce não teria sido morto, e sim um sósia seu, enquanto o verdadeiro teria se refugiado em algum lugar. No correr da trama, novos elementos vão se somando, como a organização clandestina Gladio, dos tempos da Guerra Fria, a morte do papa João Paulo I, maçons, terroristas, a Cia e golpes de Estado.
Enquanto acompanha os relatos, o leitor fica em dúvida se Braggadocio realmente acredita em tudo aquilo, se ele está só querendo uma boa história ou se realmente há uma conspiração acontecendo (ficcionalmente, é claro). Até porque, antes de começar a falar do jornal e da equipe, o primeiro capítulo do livro avança no tempo e mostra o narrador-protagonista em seu apartamento, também um tanto quanto paranoico: ele tem certeza de que alguém entrou ali durante a noite, pois a água está desligada e ele sequer sabia onde ficava o registro.
Há também um toque no romance na história, com o envolvimento, aos poucos, de Colonna com Maia. Entretanto, não espere que seja ali o foco da trama, nem que o relato desabe para o estilo "água com açúcar".
Uma curiosidade é que o próprio Eco explora um pouco aquilo que o líder do projeto do pseudo-jornal diz aos redatores, no primeiro dia: como os números zero não serão distribuídos, eles escrevem sobre fatos passados como se não tivessem acontecido. E o escritor também situa sua história no passado, em 1992. Talvez isso não influencie diretamente no rumo da trama, mas é curioso perceber o estranhamento, certamente proposital, por ver Colonna se referindo a disquetes, por exemplo - muitos leitores mais jovens provavelmente nem chegaram a usá-los, mas eles eram o que de mais moderno tinha até meados dos anos 1990.
Daquele tipo de história que dá vontade de correr a pesquisar o que tem de real por trás do romance, Número Zero é, além de tudo, uma leitura relativamente rápida, com suas 208 páginas (menos da metade do que os romances anteriores do autor). Digo "relativamente" porque, apesar das poucas páginas, o livro é denso, e por vezes exige que se pare, respire e até mesmo retorne um pouco.
Se você for seguir essa dica, lembre-se: como eu disse antes, a leitura é saborosa e inteligente, mas não é fácil. No entanto, vale a pena.
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