Atire a primeira pedra quem nunca recebeu um olhar atravessado, ou mesmo uma reprimenda, por dizer que alguém era "velho", em vez de usar o termo politicamente correto "idoso" - ou sua versão mais atualizada, "da melhor idade". Assim como nesse exemplo, nos últimos anos temos visto dezenas de outras palavras antes usuais caírem em desuso por serem julgadas politicamente incorretas.
Seria isso um mero modismo, ou há fundamentação nessa mudança no modo de falar? Para a pós-doutora em Linguística Désirée Motta Roth, professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), a substituição é válida e necessária.
- Toda a nossa experiência de mundo, o modo como produzimos sentido das coisas, pessoas e eventos é mediada pela linguagem, portanto, toda a linguagem é parte do sentido que damos ao mundo. Assim, uma palavra com sentido negativo, derrogatório, ofensivo, constrói uma imagem negativa, derrogatória, ofensiva de nós ou do outro - diz.
Désirée cita como exemplo o termo inglês "boy" (menino, garoto, moleque), que era usado nos anos de segregação racial legalizada nos Estados Unidos, em que o homem branco protestante médio acreditava que havia um valor negativo "natural", "na essência" de uma pessoa negra. Segundo a professora, usava-se "boy" para chamar negros de qualquer idade, inclusive senhores maduros, produzindo o sentido de que eles eram subalternos, sem autoridade social.
- Nesses termos, chamar os militantes que se opuseram ao governo militar no Brasil de "terroristas" ou "heróis" constrói uma ou outra realidade acerca da experiência brasileira daqueles 20 anos. Por isso a importância da análise e substituição de termos. A língua escrita ou falada é um instrumento poderoso de ação política - salienta, acrescentando que tudo em linguagem é um acordo social.
Confira a entrevista concedida por Désirée Motta Roth, por e-mail:
Almanaque: Existem palavras intrinsecamente "ruins", preconceituosas? Ou seria a sociedade que, ao condená-las ao desuso, promove uma espécie de preconceito linguístico, dando a elas um significado antes inexistente?
Désirée Motta Roth: Primeiramente, não existem palavras intrinsecamente "ruins", preconceituosas. É a sociedade que vai dando sentido mais/menos positivo/negativo às coisas em função da dinâmica das forças econômicas, políticas, culturais, etc. ("Colloriu" e "Malufar" já tiveram sentido positivo no Brasil, quando as forças políticas da sociedade estavam a favor desses políticos). Como a língua que se fala, ouve, lê e escreve é a própria substância que dá materialidade à nossa experiência, nomeamos as coisas, pessoas e acontecimentos, que têm determinados valores na sociedade. No ato de mencionar uma palavra para nos referirmos a algo ou alguém, estabelecemos uma relação entre o valor das coisas, pessoas e acontecimentos e as palavras que os nomeiam. Assim as palavras passam a ter valor positivo ou negativo.
As representações que temos na mente sobre o que seja negativo ou deplorável se estende às formas da língua. O português considerado norma culta urbana hoje é apenas uma das possíveis formas que a língua poderia ter tomado à medida que o processo histórico dos falantes dessa língua foi se desenvolvendo. A capital do país ter sido no Rio de Janeiro e depois Brasília determinou o uso de um sotaque hegemônico na TV (com o emprego do "você", por exemplo). Se a capital tivesse mudado para Porto Alegre no início da colonização, talvez os jornalistas da rede Globo hoje aceitassem "tu" como forma de tratamento hegemônica.
Outra questão é a do preconceito linguístico: sentirmos que uma forma da língua não é correta, é feia, é constrangedora e assim estendermos nosso julgamento à pessoa que usa essa forma. Por exemplo, é comum um carioca julgar que toda a pessoa que fala "as casa", "as coisa" (sem a flexão de plural no substantivo) é ignorante, sem estudo, etc, porque não emprega a norma urbana culta ("as coisas"). Isso é preconceito, pois muitos de meus colegas da UFSM e eu, todos doutores, usamos essa forma do gauchês normalmente na vida profissional e doméstica, conforme estudo que desenvolvi em 1990 e que está publicado na antiga revista do Centro de Artes e Letras da UFSM. Não somos ignorantes e "as coisa" é parte do dialeto que falamos, o gauchês. O julgamento a priori do caráter do falante apenas com base nas formas linguísticas que usa é o preconceito linguístico. Não há um significado latente nas palavras - salvo casos como a onomatopeia, que é a imitação dos sons como o "tiquetaque" do relógio. O sentido é dado às palavras pelas falantes da língua.
Almanaque: Estamos vivendo numa época em que é realmente necessário autocensurar-se linguisticamente o tempo todo?
Désirée: Estamos vivendo numa época em que é realmente necessário refletir sobre como enxergamos a vida, as pessoas, as coisas, etc. Refletir sobre nossos preconceitos latentes, subliminares, embutido nas palavras que pronunciamos. Por exemplo, cito o que ouvi no noticiário da TV: "Dois arquitetos são agredidos em São Paulo ao serem confundidos com casal gay". Nessa frase está implícito que se você é arquiteto não é gay, são duas condições reciprocamente excludentes. Então aí já se expressa preconceito: gays não são arquitetos ou arquitetos não são gays, gays não têm profissão digna como a de arquiteto, um arquiteto não pode ser gay, etc. Acho que a questão não é "autocensurar-se linguisticamente o tempo todo", mas sim refletir o tempo todo como passamos a determinar valores a coisas, pessoas e acontecimentos, aprender que, em matéria de língua falada ou escrita, nada tem intrinsicamente um valor, mas os processos culturais, políticos, históricos, nossa índole, educação familiar, grupo de amigos, etc, nos convocam a achá-las feias, indesejáveis, nojentas, negativas. É uma questão de hegemonia das formas linguísticas. Acho que as pessoas estão mais atentas e reativas a ofensas e preconceito.
Almanaque: Existem momentos em que, realmente, esse cuidado maior com o politicamente correto na fala se faz necessário, face a outros em que a naturalidade pode se manifestar?
Désirée: Sim, acho que, em tempos em que se valoriza a postura ecologicamente correta, é importante perceber que ser politicamente correto é parte do pensamento ecológico (o ser e o todo, o entorno). O uso da língua falada ou escrita em combinação com outros sistemas semióticos, como disse acima, é um instrumento poderoso de ação política, portanto deve receber atenção e cuidado sempre. A cada momento que usamos a língua falada ou escrita, atualizamos os sentidos associados a ela e assim reforçamos a construção/representação discursiva do que chamamos de "realidade".
Devemos nos conscientizar sobre a grande necessidade do conhecimento sobre linguagem para que qualquer pessoa possa participar das práticas sociais contemporâneas, essencilamente discursivas. As atuais práticas sociais são eminentemente letradas, demandam práticas de uso de língua escrita em combinação com outros sistemas semióticos como a imagem, etc.
A "naturalidade" de uma pessoa ao "se manifestar" de que falas na tua pergunta não existe. Absolutamente tudo em linguagem é um acordo social. Um termo nunca existirá "naturalmente", a não ser que mais de uma pessoa acordarem/aceitarem/combinarem que um termo terá um sentido e esse termo for relevante para a produção de sentido entre elas.