Conjuntos de música afro-cubana e portenha, bailarinos acrobáticos, uma soprano italiana e até uma “Típica Uruguaia”. Os mais variados ritmos e manifestações artísticas passaram pelo Palácio de Festas, espaço de diversão e lazer montado bem no meio do Parque da Festa da Uva de 1950, junto à antiga Cooperativa Madeireira Caxiense - atual Hiper Zaffari Centro.
Porém, todo esse festival de atrações, que costumava invadir as madrugadas e atrair grande público, não agradou em nada a ala conservadora da cidade. Dias após o incêndio que destruiu a boate, em 17 de março de 1950, dois textos anônimos e publicados pelos jornais Pioneiro e Correio Riograndense repudiaram veemente o lugar, com a justificativa de desrespeitar o período da Quaresma e o Ano Santo.
Um deles, reproduzido na coluna de quarta-feira, condenava a exótica bailarina carioca Eros Volúsia, a derradeira atração, poucas horas antes do início das chamas. O outro, que figurou no Correio Riograndense de 29 de março de 1950 - e, posteriormente, no Pioneiro de 8 de abril de 1950 - não ficou atrás. “Pimentinha”, pseudônimo da autora, deu um show de preconceito, conservadorismo e desrespeito pelos artistas contratados:
“Quatro horas e quarenta da madrugada do dia 17 de março último, mal tinham apagado as lâmpadas, que, em profusão, iluminavam todo o recinto da Exposição da Festa da Uva em Caxias, quando grossos rolos de fumaça e, logo em seguida, línguas de fogo se lançam violentamente para os ares, devorando, em menos de uma hora, o já tão famoso e falado salão de festa, cujas cinzas o vento levou... Essa tenda, a única sem razão de ser na quadra da Exposição, teve mortalha digna da sua efêmera, inglória e muito escandalosa presença nas comemorações tão merecidas e brilhantemente realizadas, com que um povo lembrou 75 anos de trabalhos e sacrifícios, de lutas e realizações, de glórias e vitórias, que tal é o quadro da imigração itálica no abençoado solo do Rio Grande. E a esplêndida festa, além disso, foi uma tomada de contas, para uma nova e, quiçá, mais surpreendente “arrancada”. Nunca, porém, para ninguém, deverá ser ocasião, motivo ou pretexto de legítimos bacanais”.
Padre Giordani
Além de criticar a existência do espaço de lazer e as atrações “de fora”, o texto citava o padre Eugênio Giordani, um dos mais ferrenhos defensores da moral e dos bons costumes dos caxienses:
“Cabem, pois, justificadas críticas ao salão de festa. Tanto mais que não valeram as razões e os pedidos do Padre Giordani, que se bateu valentemente, qual João Batista, para afastar os bailes e outras frívolas mundanidades de dentro do augusto e instrutivo recinto da Exposição. E o Padre Giordani, em protesto, demitiu-se da Comissão da Festa da Uva. Qual o motivo da presença do salão de festa ali? Ora, bolas, que pergunta! Precisava divertir o povo, o público, os visitantes, os forasteiros. Mas todo o mundo, parece, tinha com que se distrair, à vontade, olhando e se extasiando diante dos maravilhosos estandes, ouvindo boas músicas e canções regionais no auditório, se regalando com uvas sumarentas e outros comes e bebes. Havia outras diversões, bons caça-níqueis, tudo ali na quadra da Exposição. Para que, então, precisou armar um rico salão de festa bem no centro da quadra?”
Na reprodução abaixo, o anúncio da inauguração do Palácio de Festas e da “boite”, publicado no jornal “O Momento” em 25 de fevereiro de 1950.
“Chamaram aquilo de boate”
A autora do texto desqualificou o espaço e a bailarina Eros Volúsia de todas as formas:
“Salão de festa é uma denominação muito corriqueira e antiquada. Carecia dum “chamarisco” do gosto dos grã-finos, que atraísse o pessoal da “grana”. E qual foi? Ora, quem não sabe o nome que usam hoje para os sonhos “românticos”, próprios dos “gostosões”, que deixa água na boca dos “besourinhos”, que faz suspirar os “gracinhas?” Chamaram aquilo de boite, que se lê boate. Foi um sucesso. Todas as noites estava assim, apinhadinha. E do jeito como funcionava a bilheteria, pode-se calcular quem a frequentava. Pobres diabos que tivessem a carteira de barriga colada às costelas não chegavam a cheirar a boite. Eram os ditosos, os perfilados, os engomados, os glostorados que bancavam em redor das mesas. Ora, também não era possível resistir à tentação de bater palmas a Eros Volúsia! Precisamente! Contrataram Eros Volúsia, “bailarina” das boites dos brasis e do estrangeiro. Também, com 3 milhões da Nação, 100 mil do Estado e não sei quanto da Prefeitura, e renda com a exploração da boite, dava para convidar exímia “tanguista”. Não sei se vem de tango ou de tangas. Que os “boiteiros” digam do mérito e da virtuosidade de uma Eros Volúsia. E ela apresentou-se em Caxias após ter “apascentado” os frequentadores das mil e umas noites em Porto Alegre, com prolongadas noitadas. Notem que as boites e bailarinas das boites só dão funções à noite. De dia e à luz do sol? Não tem graça!”
Leia mais
O incêndio do avião Duque de Caxias na Festa da Uva de 1950
Parque da Festa da Uva na Madeireira Caxiense em 1950
O incêndio na Cooperativa Madeireira Caxiense em 1949
Na imprensa
Confira abaixo os textos originais, publicados nos jornais Pioneiro e Correio Riograndense de março e abril de 1950.
Castigo de Deus
Ao final do texto, a autora transferiu sua opinião para “o povo” e invocou uma espécie de sermão religioso contra o Palácio de Festas:
“Dizia o povo: este incêndio é castigo de Deus! Que horror! Bailes e folias durante a Quaresma e o Ano Santo, aqui no recinto da Exposição! Aquela meia dúzia, que a maioria, graças a Deus, a grande maioria, do bom e religioso povo da bela cidade de Caxias, ouve a voz do Sacerdote. Vai daí, precisamente, agravo maior, cometido por aqueles que não respeitaram o sentimento da grande maioria. Intraduzível ludíbrio contra os fundadores de Caxias, de costumes morigerados e calcados sobre a santa lei de Deus e de profundo respeito à Santa Igreja. Esta é a verdade! Nisto devemos insistir, até saturar e ensurdecer aqueles que frequentaram a Boite da Exposição e se refestelam em outras boites; porque infelizmente, dolorosamente, tais antros existem rondando a cidade, quais chacais esfomeados. Enfim, onde só devíamos aplaudir grandezas e magnificências da pomposa festa dos 75 anos de imigração itálica, no apagar das luzes, para emanar-lhe o brilho, surge a boite e aparece Eros Volusia. Mas... o vento levou.”
Leia mais
Acrobatas alemães agitam o Centro de Caxias em 1957
Faquirismo, jejum, serpentes e uma cama de pregos em 1958
Amilcar Pezzi, um caxiense (quase) em Hollywood nos anos 1920
Ousadia e vanguarda
Crítico de dança, o jornalista Carlinhos Santos traz um breve grifo sobre a importância de Eros Volúsia para o bailado brasileiro ao longo do século 20.
Isadora Duncan abriu o século XX sensualizando a dança mundial dançando de pés descalços, entre sedas e lenços esvoaçantes. Daí, bailarinas do mundo inteiro resolveram inventar seus próprios recursos para se impor na cena. Ousadias vieram dar aos trópicos nas performances incendiárias de uma Eros Volúsia, a bailarina que soube traçar um percurso ímpar na cena da dança brasileira nos inquietos anos 1920, na emergência do Modernismo Brasileiro. Em alguns momentos descalça, noutras sambando na sapatilha, Eros Volúsia foi vanguarda na busca de uma linguagem tupiniquim para o bailado. Fez carreira internacional, mas resolveu ficar no Brasil para aprofundar o que hoje se chamaria de pesquisa etno-coreográfica em torno de movimentos herdados de negros e índios.Ousada, sensual e irreverente, a carioca filha de uma família de artistas dançou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e sambou na cara dos preconceitos estéticos de uma cartilha branca e europeia. Quando resolveu ser vedete em Hollywood, Carmem Miranda teve que fazer reverência ao caminho já aberto pela impetuosa Eros Volúsia. (Carlinhos Santos, crítico de dança)
Leia mais
O reinado da Festa Nacional da Uva de 1950
Painel "Alegoria Primeira ao Imigrante" na Festa da Uva de 1950
Metalúrgica Gazola homenageia pracinhas na Festa da Uva de 1950
Memória da Festa da Uva: os 75 anos de imigração italiana em 1950
Presidente Eurico Gaspar Dutra visita a Festa da Uva de 1950
Festa da Uva: um desfile pela Av. Júlio em 1950
Diretoria de Fomento e Assistência Rural na Festa da Uva de 1950