Passei a vida inteira tentando salvar o mundo. Hoje, quando penso naquela criatura que fui, tão aguerrida, lembro com saudade da energia de transformação que emanava do meu ser. Ao mesmo passo, com penar, lembro do meu corpo e meu emocional definhando, dia após dia. Estava ali, no fronte, desarmada, pronta pra batalha sem treinamento algum de guerra.
Não, eu não estou me lamentando pelas lutas que me foram entregues na vida. As vitórias e derrotas são minhas. Não, não sou uma egoísta ególatra, pelo contrário: meu senso de comunidade e minha experiência me dizem que é impossível salvar o outro sem antes salvar a si.
Se não sei nadar, como posso salvar quem se afoga? Rememoro Brecht aqui.
Quase não sobrevivi aos anos que me debrucei e vivi pelo outro e, nessa possibilidade, o outro é conceito amplo: família, relacionamentos, trabalho, amizades, militância. Fui seguindo na labuta, na saga da heroína sem superpoderes, cheia de empatia por todos, menos por mim.
E, na guerra, um soldado exposto é mais fácil de abater. Fui abatida mais vezes do que posso mensurar. Eu caí mais vezes do que consegui me levantar. Acabei carregando o fardo da derrota pela vida afora. O carreguei com dor e desequilíbrio até entender que, ou eu me fortalecia, ou dali pra frente só me restariam batalhas que já se iniciaram perdidas.
Como quem desbrava a imensidão do universo e pisa na lua, pousei em mim. Entrei em contato comigo e foi, inicialmente, assustador. Eu nem sabia quem era aquela pessoa que morava dentro de mim, não tinha ideia do que ela era capaz, lá em suas profundezas.
Resolvi cavar, iniciei a expedição. Aparentemente, o poço não tinha fundo, me assustei com o quanto havia de dor enterrada sob meus sorrisos. Aparentemente, gente como eu é construída sobre escombros.
Precisei, naquela época, travar uma batalha épica: a luta pela valorização da minha história, da minha beleza, da minha luz. Para isso, me afastar do outro foi imprescindível. Me ver sem espelhos foi necessário. Ah, os horrores que habitavam meu espírito. Adentrei cada monstro dentro da minha alma. Na hora, susto, depois entendi que tudo aquilo era, também, eu. Cada monstro era eu. Era meu!
Fui sacando camada por camada, ora no amor, ora na foice. Sabe, o primeiro corte dói mais, os machucados que vêm depois cicatrizam com mais facilidade. Não poupei dor, deixei sangrar até enxergar minha humanidade. Vi que minha arrogância de apontar o caminho para o outro, estando, eu, perdida, imperava. Recuei.
Entendi, somos guerreiros, mas antes disso, humanos. E, humanamente, travei muitas batalhas. Sangrando, sem arma, venci todas. Sem crer na vitória, fui vencendo. Dias e anos passaram, eis-me aqui: forte, no fronte.
Intercalando sonhos e pesadelos, captei meu processo de cura. Cura envolve tempo e superação. Entendi o tempo, discerni minhas fragilidades. Vi que há em mim uma luz que pulsa, um ser que pensa, que ama e que ilumina o cosmo.