Eu sempre percebi, desde muito cedo, que havia algo estranho entre homens e mulheres. Sentia que havia uma sombra, um silêncio, um buraco. Percebia, mas não entendia, carregava comigo a sensação que para mim, uma mulher, aquilo que não era falado era sinônimo de desvantagem.
Com pouca idade não conseguia nominar. Mas eu sentia que a diferenciação de gênero me atacava pelas costas como um punhal muito bem afiado. Cortava as carnes por d’onde entrava e me imobilizava.
Eis, que, num dia ensolarado, entendi. Vi.
Eu tinha uns sete anos. Era a primeira vez que presenciava uma cena de violência doméstica. Tenho 34 anos agora e nunca me esquecerei de como me senti: angustiada, confusa, com uma pulsante certeza que aquilo era muito errado e não deveria estar acontecendo.
Uma vizinha estava sendo violentada pelo marido dentro de seu quintal, ouvíamos, da rua, os gritos. Dela, de socorro e dor, e dele, de raiva e descontrole. A rua se enchia de gente que não intervia diretamente, alguns apenas gritavam para que o homem parasse, ameaçavam chamar a polícia, naturalmente não surtia efeito algum. E lembro-me, também, de ouvir muita gente botando panos quentes ou culpando a mulher.
Ela tentou pular o muro, ele a puxava de volta às pancadas, ela conseguiu fugir para a rua pelo portão. Foi aí que vi a imagem que está estampada nas minhas retinas ainda hoje. Uma mulher transtornada.
Na sua expressão, o pavor. Roupas rasgadas, hematomas, sangue no rosto. Correu em direção às pessoas, não lembro de ver alguém a acolhendo. Ficou ali em desespero e sozinha. Falava, gritava, chorava. O covarde permaneceu dentro de casa. Ela se acalmou, chamou loucamente pelos filhos que estavam dentro de casa. Não lembro muito bem de como tudo se sucedeu depois, mas sei que ela voltou pra dentro. Não era a primeira vez que acontecia, não seria a última.
Depois disso, eu vigiava a porta da casa dela para vê-la, nunca mais a vi. Um tempo depois um caminhão parou e levou a mudança deles. Hoje, com o conhecimento que tenho, sei que o que aconteceu ali, naquela casa no interior de Goiás. Me pergunto sobre o que terá acontecido com aquela mulher. Rezo para que ela tenha escapado daquele monstro e esteja feliz com seus filhos em um bom lugar.
O que sei é que eu cresci, compreendi a violência que atinge a nós, mulheres, e nunca me calei. Meto a colher, a mão na cara, a voadeira, faço hoje o que aquelas pessoas não fizeram naquele lamentável dia quando eu só tinha sete anos e me descobri feminista. Não me deram exemplo algum de como eu deveria me portar diante de uma covardia absurda daquelas, mas eu aprendi: aprendi a não ser como eles, meros espectadores da desgraça alheia.
Não podemos naturalizar a violência conosco ou com o outro. A cada vez que fazemos isso perdemos um tanto do humano dentro de nós. Quero acreditar que somos mais que uma capa de carne, ossos, ganância e egoísmo. Quero mesmo.