Mulher negra, mãe da Pilar e jornalista. Nascida em Goiás, mal sabe se aprendeu primeiro a escrever ou a falar, mas sabe que desde que aprendeu ambas as funções, nunca mais parou. Gosta de ver as estações do ano mudarem e, por este motivo, escolheu Caxias do Sul para viver. Escreve sobre as dores e alegrias de ser gente e só.

Opinião

Sandra Cecília Peradelles: ser mulher negra

 O entendimento do ser menina gera um tratamento específico, cheio de zelos, encaixando os corpos a partir do seu sexo de nascimento, em lugares previamente definidos

Sandra Cecília Peradelles

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Todas as vezes que penso em Cris meu cérebro abre uma tela sob o céu e passa um filme. Um longa-metragem da gente se enxergando gente. A primeira vez que vi Cristiane, era num dos primeiros dias da faculdade de Jornalismo. Cris adentrou à sala de aula, preparatória de adultos pagadores de boleto, onde eu me escondia na última fileira de cadeiras. Eu ali, empolgada e ressabiada. 

Sua presença preta iluminou minha vida, naquela hora e para sempre. Vestíamos praticamente a mesma roupa. Em mil vidas jamais esquecerei a saia lápis, a camisa xadrez e o all star. A gente se olhou, se percebeu. Uma semana depois éramos irmãs. E eu fui aprendendo a viver ao lado dela. Fui me reconhecendo nas experiências dela. Cris me mostrou que eu era negra e toda minha vida começou a fazer sentido. Viver, então, pra nós, passou a ser, conscientemente, um ato político. 

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Enquanto respirávamos revolução, entre um Lambrusco e outro, no dia do pagamento, fomos nos fortalecendo com afeto. Compartilhávamos sonhos e dores, muitos risos frouxos e um deboche que era fuga da realidade que, por vezes, nos sufocava. Seguimos assim, uma na mira da outra, o espelho cada vez mais limpo e nosso mundo se enegrecendo. Nós mulheres somos potentes juntas, mas duas mulheres pretas unidas mudam o eixo da terra. 

Cris é uma mulher preta retinta, não desfruta dos mesmos privilégios que eu, com minha pele clara. Sua passabilidade social esbarra na cor da sua pele negra brilhante. Cris viveu dores que eu só consigo supor, mas nunca mensurar. 

Um dia perguntei a ela o que era ser mulher, ela arreganhando aqueles dentes lindos, sorriu com a boca e seus olhos não sorriram. Eu não consegui ler muito bem o que ela sentiu, mas depois que ela terminou de falar o chão se abriu sob meus pés e eu nunca mais parei de cair. 

Ela disse: eu soube que era uma pessoa negra antes de saber que era uma mulher. Eu me reconhecia nos meus familiares, me enxergava neles pela cor da pele. Eu sou sempre negra. Mas, mulher… depende.

Ali ela escancarava o que eu já sentia, só não entendia. Ela seguiu me dando uma aula. “Eu me lembro de perceber que não era como as outras meninas brancas. O entendimento do ser menina gera um tratamento específico, cheio de zelos, encaixando os corpos a partir do seu sexo de nascimento, em lugares previamente definidos. Quando se é uma menina preta é diferente. Somos menos tocadas, menos cuidadas e, desde muito cedo, ensinadas a ser forte diante das dificuldades impostas pelo racismo.”

“E, logo, surgiu uma pressão externa para que eu me tornasse adulta, mesmo tendo uma cabeça de criança. Eu me lembro de sentir um tratamento de responsabilização e sexualização muito cedo, sem maturidade para compreender o que era aquilo. Embora eu tenha percebido mais tardiamente que era uma mulher, como disse Audre Lorde: ‘eu nasci negra e mulher’. São duas das inúmeras coisas que me fazem ser quem sou.”

Essa é a Cris, minha irmã de alma, meu espelho, minha professora. Eu queria muito que vocês a conhecessem.

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