O meu primeiro ato revolucionário enquanto adolescente rebelde foi decidir furar a orelha. Em meados dos anos 2000, isso era tão excêntrico quanto nunca ter ouvido falar nos Beatles ou no Ronaldo Fenômeno. À minha volta, os olhares maldosos denunciavam o julgamento logo que apareci com uma pedrinha de brilhante na orelha direita, um verdadeiro absurdo que descobri ser capaz de atingir qualquer um. Foi como dizer um punhado de palavras ofensivas sem nem abrir a boca, o bastante para que eu suspendesse a iniciativa algumas semanas depois.
Aos poucos, o furo fechou. E exatamente como qualquer outro rasgo que existe propositalmente ou não, ele remendou-se como pôde, em uma velocidade muito oposta à perfuração em si. Só que agora a pele se regenerava com atravancos subjetivos – era o tecido tentando se reconstruir em meio a tudo aquilo que eu tinha escutado por ostentar um brinco de nem meia dúzia de milímetros. As ofensas devem ter funcionado como o pus que entrega o insucesso da empreitada: meu presente foi uma orelha infeccionada e uma deformação minúscula que divide a vida comigo até hoje.
Traumas à parte, um dos primeiros choques de realidade que levei foi justo nessa época. O brinco, tão ínfimo, foi mal visto por um parente que nunca deve ter ido com a minha cara. Imediatamente deixei cair no chão toda a excitação que carregava como um pré-adolescente que se difere dos demais (e achava isso incrível). A represália foi justificada com o argumento de que “furo na orelha direita era coisa de mulher”. Mal sabia eu que, alguns meses depois, já com um caroço no lugar do brinco, eu assistiria o mesmo parente posar para fotos com um brilhante na orelha. Na esquerda, é claro. Coisa de homem.
Lembrei dessa história quando pintei as unhas pela primeira vez (salvo as pinturas de corretivo líquido e marcador de texto ainda na escola). O esmalte preto não foi comprado ao acaso: básico e discreto para não chamar tanta atenção. Por mais que o meu eu de hoje já esteja vacinado para as contradições e julgamentos de terceiros, escolher fazer algo diferente em plena pandemia (isto é, trancafiado dentro de casa e longe dos convívios sociais) talvez ainda representasse o desconforto em receber olhares indesejados. O lado bom de um teatro vazio é a garantia de nenhuma crítica.
De meados dos anos 2000 pra cá, pouco mudou. O brinco masculino já foi compreendido e aceito como mero adereço, e o homem branco heterossexual permitiu o seu uso em qualquer orelha – sem julgamentos, ele jura. Já as unhas pintadas, prática herdada dos egípcios há mais de 5.000 anos, estas continuam em discussão. Na semana passada precisei escutar que “quem pinta a unha é mulher ou se considera como uma”, e lá no fundo pude ouvir a gargalhada dos povos antigos que usavam cores mais fortes ou mais fracas em suas unhas pintadas para evidenciar as diferentes classes sociais. O preconceito de fato mora na falta de informação.
E assim seguimos. De cara lavada, unhas sem cor e caroços em orelhas que um dia ousaram ir contra as regras. Aqui, eu deveria finalizar este texto com uma frase de impacto ou reflexão, exatamente como deve ser (e eu que não arrisque o contrário!), mas preciso parar de escrever porque fiz alguns desenhos nas minhas unhas e corro o risco de borrar. Volto já.