O medo da morte nunca me alcançou porque ele sabe que por aqui não teria vez. Por mais que eu já tenha sentido um pouco de pena ao imaginar que poderia ir embora sem fazer metade daquilo que planejei, hoje entendo que vou fazer tudo aquilo que tiver que ser feito – mesmo se isso significar só uma parte das minhas vontades. E se nós vamos viver pelo tempo que nos for permitido, essa ideia de recear uma certeza se torna tola. A inerência do ser humano em poder ter controles que não lhe competem se prova, mais uma vez, algo démodé.
Infelizmente, percebemos a validade que a vida tem quando alguma morte é anunciada em um dia que pensamos ser só mais um. No fim do ano, a partida angustiante de Pelé me fez lembrar de Elza Soares, Lygia Fagundes Telles, Erasmo Carlos, Jô Soares e tantos outros que, em algum momento da minha infância, acreditei serem eternos. Talvez a quebra dessa ideia da eternidade veio quando Gugu faleceu antes de Sílvio Santos, algo tão inesperado quanto a perda de Paulo Gustavo ou Marília Mendonça. É como um grito em meio à dor que escancara: a única garantia é que estamos vivos.
Agora.
E mais agora. Quem sabe o que vai acontecer no próximo instante, prestes a chegar?
Chegou. Mas já envelheceu, rápido assim. Tudo vive e morre o tempo todo.
Talvez aqueles que menos temam a morte sejam justamente os que se arriscaram. Quando ainda existe vida, qualquer loucura parece nos aproximar do nosso fim – e é justamente ao nos perceber sobreviventes que o medo de morrer diminui.
Foi assim com Gloria Maria, que desde os anos 1970 já vencia diariamente o racismo em um país impiedosamente racista. A primeira repórter negra a aparecer na televisão brasileira saltou do maior bungee jump do mundo, com mais de 230 metros de altura, e sua defesa foi de que nunca saberia como era se não arriscasse. “Se eu morrer, pelo menos vou morrer em glória”, disse na época, algo que eu atualizaria para “se eu morrer, pelo menos vou morrer vivendo”.
Entre a fuga de uma onça no Pantanal e o dia em que saiu da órbita da terra para testar a gravidade zero, Gloria sempre levantou a bandeira da liberdade de ser o que se é – exatamente como queremos ser, e nunca aquilo que esperam. “Ninguém vai morrer por mim”, constatou ao participar do Roda Viva, e ali o conselho foi claro: fazer o que se quiser fazer, já que, da mesma forma, ninguém vai viver pela gente. Se a morte é o fim da vida e esta é uma certeza desde que nascemos, não há porque temer.
Já avisei aos que me ladeiam: quando eu morrer, por favor, não façam velório. Doem todos os órgãos que puderem prolongar outra vida e, assim que permitido, podem me levar direto ao crematório. Façam jus à tatuagem do meu braço esquerdo – se “este corpo é temporário”, então por que mantê-lo aqui quando eu nem mais estiver? Sem chororô em cima de mim, sem lástimas atrasadas ou cochichos paralelos. Que a minha partida seja a tranquilidade que tanto buscamos em vida, com despedidas silenciosas e individuais, cada um onde quiser estar.
No fim, que eu tenha a sorte de lembrarem de mim compartilhando o mesmo sentimento e palavras da Gloria: “tenho tanta fé que nem tenho medo de morrer”. Até porque, a gente morre o tempo todo mas continua existindo.