O que seria da vida sem a morte. Piegas, né?
Tenho apreço pelos solitários. A vendedora de rosas ou a mulher que caminha pelo Centro, apressada, desviando da multidão. Sempre na mesma esquina, com a mesma gama de cores de flores. Sempre o mesmo trajeto, caminhando como quem tece uma colcha de retalhos.
O açougueiro, atrás do mesmo balcão, diariamente, afiando a mesma faca, cortando a mesma carne. Em casa, contudo, a rotina dissipou-se no breu da falta. O câncer que corrói as entranhas acelerou a solidão. Resta o porta-retrato e a cama vazia.
O carteiro aposentado. Hoje, só caminha amparado pela bengala ou pela cuidadora. A casa está sempre cheia. Gente que faz comida, que coloca ele pra dormir, que serve a mesma travessa de comprimidos. Remédios que servem pra quase tudo, menos pra devolver as lembranças que vêm e vão como a neblina invernal.
A escritora que tece prosa com agulhas de crochê. O olhar da Clarice, a languidez felina, a sutileza da palavra como o orvalho que acaricia o prado verde. E a casa como refúgio, adornada pelo amor que resiste e se renova a cada troca de estação.
O escritor. Cerrado em si, apegado aos dogmas que cunhou como o escultor que dá forma à pedra inconformada. Os personagens conversam entre si, entrelaçando suas memórias às memórias da casa. Não como refúgio, mas epicentro da vida-fagulha que ainda resiste, amórfica, ressoando dentro do velho fogão a lenha.
O ator fora de cena. Difícil sair do palco, mesmo com o teatro vazio. O silêncio não o perturba. É afável. Sempre esteve atento às pausas, à espera do fim da fala do parceiro em cena. Só não previu que viver sem a bengala do texto, sem a máscara do personagem ele fosse tropeçar em cada pedra pelo caminho. A vida, fora de cena, exige ainda mais improvisos.
A dentista, no mesmo consultório, vestindo o mesmo jaleco impecável. A mesma máscara branca que protege o paciente é também conveniente. A máscara é quase como um personagem, cúmplice do que só o olhar deixa vazar. A solidão é intransigente. Sobretudo quando a dor é intermitente e ressoa pelo lar, lugar de gestação. Lembrar é como voltar pra casa.
Tenho apreço pelo exílio, apesar da vida.
E o que seria da vida sem o silêncio?