O cinema anda chato. Muito chato, aliás. E tende a ficar pior, sobretudo agora com o adeus à vida de Godard. “Adeus à vida de Godard” não é o nome de um filme, mas poderia ser. Uma de suas últimas realizações, aliás, se chama Adeus à linguagem (2014). A obra se inicia com uma sentença que vale a vida toda de um punhado de cineastas que nascem e morrem diariamente sem ter o que dizer: “Aqueles que não têm imaginação buscam refúgio na realidade”.
Conheci Godard por causa do Márcio Schenatto, que foi meu colega no curso de Jornalismo. Naquela época, eu preferia os filmes do Fellini, mas confesso que fui seduzido por Je Vous Salue, Marie (1985), a que assisti de joelhos diante de uma cópia em VHS emprestada pelo Schenatto. A obra foi rechaçada pelo Papa João Paulo II e proibida no Brasil, inclusive pelo governo do Sarney, o vice que virou presidente na redemocratização.
Sérgio Augusto, jornalista e pai dos cinéfilos pós-1960, escreveu sobre o episódio em uma crônica publicada pelo Estadão, no caderno Aliás, em 2020, curiosamente, ele abordava Os 35 anos do fim da censura no Brasil. Em 29 de julho de 1985, como contou Sérgio, “a censura foi declarada morta no país”. No entanto, porém, todavia... “Sete meses mais tarde, Sarney, pressionado pela Igreja Católica e líderes evangélicos, proibiu a exibição de Je Vous Salue, Marie, de Jean-Luc Godard, em todo o território Nacional”.
Essa ação impositiva só reforça o que o cineasta deixou como síntese do seu manifesto de vida por meio do cinema: “Aqueles que não têm imaginação buscam refúgio na realidade”. Godard foi demonizado por recontar a história bíblica de Maria (Myriem Roussel) e José (Theirry Rode), desta vez como um casal contemporâneo. Na trama, José é taxista e Maria trabalha em um posto de gasolina. Essa fixação de parte dos espectadores pela realidade sem espaços para a sublimação, licença poética e o escambau, é a muralha que segue sólida atravancando a fruição da filmografia de Godard.
Nesse sentido, é como se o cineasta tivesse morrido antes de cerrar os olhos pela última vez em um silencioso e interminável fade out. Segundo o jornal francês Libération – fundado em 1973 com apoio de Jean-Paul Sartre –, Godard morreu por meio de um suicídio assistido, na última terça-feira. Ele cedeu à morte porque estava exausto. Morre o autor que rasgava os conceitos de narrativa cinematográfica a serviço de uma compreensão facilitada ao espectador.
O cinema de Godard não é linear, porque a vida também não é. Somos afligidos a todos instante, seja por memórias que nos atormentam ou entorpecem ou pela esperança de que amanhã vai ser um dia melhor. Presente e passado se fundem como nos sonhos e nos pesadelos, muito deles que vivenciamos de olhos bem abertos. Mais do que uma pilha de filmes, Godard nos deixa o legado de um autor desesperado por contar histórias, interessado sempre na perspectiva existencialista, como uma constante luta corporal contra um mundo opressor, inquisitor e demonizante.
Je vous salue, Godard.