Leio que a nova fronteira a ser desbravada pela inteligência artificial será a de fazer com que sejamos capazes de ler o pensamento dos outros. Não duvide, e nem espere que essa façanha hoje inimaginável aconteça daqui a cinquenta anos. Tudo o que se preconizou em termos de avanços tecnológicos tornou-se realidade bem antes. Não sei, mas tenho a impressão que se essa fronteira for rompida, precisaremos redefinir o significado do termo “natureza humana”. Em primeiro lugar, como manter um casamento se pudermos conhecer irrestritamente o que se passa na cabeça de nossas esposas e maridos? Convenhamos: alguns inocentes segredos são fundamentais para a convivência.
Quem conta tudo o que faz ou deseja? Se fôssemos compulsivamente sinceros, poucos relacionamentos sobreviveriam. Se esse último reduto vier abaixo, prepare-se: será o fim do mundo como o concebemos até agora. Talvez os pesquisadores inventem um dispositivo para bloquear o acesso quando assim o desejarmos. Ou eles o quiserem, o que é bem pior, pois essa invasão seria uma forma de poder totalitário sobre quem detém essa ferramenta. De qualquer maneira, nem George Orwell, em seu magnífico e cada vez mais atual livro “1984”, teria criado algo tão assombroso. Só que isso parece não ser mais uma distopia, já que em alguns laboratórios de ponta se está trabalhando aceleradamente em busca dessa descoberta. Pense comigo: existiria algum sentido para o que hoje chamamos de intimidade? Como lidaríamos com as emoções, tão suscetíveis às características de cada um? E o que os ditadores não fariam se puderem monitorar a ideologia alheia, sabendo exatamente que aspectos reprimir dentro dos cérebros das pessoas.
Pretendo viver muito ainda, mas não gostaria de fazer parte de uma sociedade em que podemos nos transformar em espiões de mentes. Considero isso uma tragédia anunciada, pois é provável que a noção de ética precisará ser reinventada. Ou anulada. Tenho mantido uma atitude mais flexível quando o assunto é a inserção no universo virtual. Beneficio-me bastante dele, extraindo conhecimentos que exigiriam um tempo inimaginável para garimpar. Preocupo-me, sim, pois o que víamos em filmes de ficção científica até então, pode ganhar tintas mais carregadas e sombrias em nosso cotidiano. O que está sendo gestado nas corporações dessa área jamais chega ao grande público: apenas o produto final. Insisto: leia o historiador Yuval Harari e você terá uma noção clara do que estamos entregando quando navegamos por algum site que solicita dados pessoais. É ali que está o início de tudo.
Estaremos nos últimos dias de uma era em que pensar-se individualmente faz algum sentido? Alguns pilares construídos pelas culturas que nos precederam precisam ser preservados, permitindo que o novo se infiltre para garantir o progresso. No entanto, fica evidente que é difícil estabelecer os parâmetros que nos indicam até onde poderemos ir. Infelizmente, logo saberemos.