No tempo de estudante, havia a chamada quinta-feira santa. E era feriado. O que retenho daquele tempo são quatro compartimentos da memória: a satisfação do pequeno estudante por um feriado de quatro dias, já que havia a quinta-feira santa, em que a tradição cristã relembra da última ceia; os filmes da paixão e morte de Jesus Cristo, em que éramos iniciados na tradição cristã; as cestinhas de Páscoa com os coelhos e ovos de chocolate; e o bacalhau lá em casa, de quinta-feira a domingo. Eu não gostava de bacalhau. Era um drama. Mais tarde, passei a gostar.
Esta é a memória. Depois, aos poucos, fomos elaborando significados, e entendendo a Páscoa como a principal data cristã. Na Páscoa, é a hora da verdade. É quando a mensagem cristã se revela na sua essência, e ela causará contradições. A Páscoa é entendida como ressurreição. A palavra ressurreição é central no vocabulário da Páscoa, mas pode camuflar as revelações e intenções pascoais quando tomada em um sentido mais vago, genérico e sem maiores compromissos. Prefiro entendê-la como renascimento. Na prática, um renascimento é uma ressurreição, mas renascimento tem uma vantagem: todos sabemos o que é. A Páscoa traz a contradição maior com nosso tempo quando propõe: o renascimento é possível a qualquer um, a qualquer hora, em qualquer lugar.
Há outros componentes muito importantes na Sexta-Feira Santa e na Páscoa. Os ladrões na cruz, ao lado de Jesus, por exemplo. É, há ladrões nesta história. E para complicar ainda mais, para trazer a história para o nosso tempo, um deles inventou de "renascer", arrependendo-se. Renasceu na cruz, na undécima hora. E ganhou o perdão do Messias, o verdadeiro. O salvo-conduto de Cristo é inapelável: "Ainda hoje estarás comigo no paraíso." E o ladrão virou até santo: São Dimas.
Olha aí o desconforto, quando se vive em um tempo em que é popular, inclusive entre muitos autodeclarados cristãos, a noção de que bandido bom é bandido morto. Essa tese não se concilia com a prática cristã, pois nega a possibilidade de um renascimento. Ou se assume um caminho, ou se assume outro. Porque renascer é a essência da Páscoa. Nascer de novo, o que se viu literalmente com a ressurreição de Cristo, nos comunica esse simbolismo central. Em tempo, o ladrão cumpriu a pena, e sua vida pregressa levou-lhe à morte na cruz. Mas renasceu.
Ninguém está a defender que não se cumpram penas. Apenas se registra que o renascimento é possível a qualquer um, em qualquer lugar. Esse é o significado da Páscoa, que pode desnudar contradições terríveis. Goste-se ou não. É pegar ou largar.